quinta-feira, 22 de março de 2012

O GRAND CHEF DE PORTUGAL


Uma cozinha entre a cidade e as serras



"Desconfiado, provou o caldo, que era de galinha e rescendia. Provou - e levantou para mim, seu camarada de misérias, uns olhos que brilharam, surpreendidos. Tornou a sorver uma colherada mais cheia, mais considerada. E sorriu, com espanto: - Está bom! (...) Estava precioso: tinha fígado e tinha moela. O seu perfume enternecia." (...)
"Diante do louro frango assado no espeto e da salada que ele apetecera na horta, agora temperada com um azeite da serra digno dos lábios de Platão, terminou por bradar: - É divino! - Mas nada o entusiasmava como o vinho de Tormes, caindo de alto, da bojuda infusa verde - um vinho fresco, esperto, seivoso, e tendo mais alma, entrando mais na alma, que muito poema ou livro santo."
Em "A Cidade e as Serras", Eça de Queirós descreve o deslumbramento do rico parisiense Jacinto ante a simplicidade do campo. Ali, na mesa, ele descobria como a alma daquela região do Douro se sobrepunha ao vazio existencial da grande cidade. Talvez esteja aí um paralelo com o chef Rui Paula, oriundo da mesma região onde se passa a trama de Eça. Estrela gastronômica em Portugal - no Douro, mais especificamente -, o chef pratica uma cozinha focada em sua personalidade, em que cada toque mostra de onde veio. Ao fim, entretanto, ele se reconcilia com a cidade e, quase como o personagem de Eça, usa o que de melhor "tecnológico" tem à disposição.
Pois bem, Rui Paula é dono de dois restaurantes, o DOP, na cidade do Porto, e o DOC, debruçado sobre o rio Douro em Folgosa, bem no meio de Portugal, na metade do caminho entre o mar e a Espanha.
 
Primeiro, o DOP, no Porto.
Após passar por ruas íngremes do centro histórico da cidade, chega-se ao Largo de São Domingos. O restaurante está constantemente cheio. Sexta-feira à noite, então, nem se diga.
Na porta, a recepcionista é muito simpática, pede desculpas ao casal de brasileiros que chega sem reservas. "Impossível", diz com um sorriso amarelo, talvez pensando na cara de pau dos dois ali diante dela. Mas, após um pouco da insistência brasiliana, ela concorda em, sem compromisso, abrir espaço num sofá e numa poltrona, na inglória espera por uma improvável desistência.
A cara de pau se paga. Uma desistência, enfim. "É raro", diz a moça da porta, enquanto se dirige para a mesa bem diante da saída da cozinha. Normalmente essa é considerada uma mesa de má localização, mas no nosso caso é perfeita para que se possa observar o movimento da casa.
Taças de cristal, porcelana bonita, serviço atencioso, decoração moderna, de linhas retas e simples. Não é um restaurante "campestre". Os detalhes mostram a pretensão de se colocar como um local internacional, atento às tendências.
Dois menus-degustação são pedidos para a mesa (€ 70 cada).
O chamado "menu mar" começa pelo carpaccio de vieiras com ceps. Aguça a curiosidade sobre o que vem adiante. Como entrada quente, creme de lagostins com lavagante (um crustáceo assemelhado à lagosta). Delicado.
Aos pratos principais então: bacalhau cozido a baixíssima temperatura, seguido de caviar de ouriço do mar e, por fim, de linguado com molho basílico. Perfeitos na conjunção de sabores, na execução. Há espumas sim, mas elas estão no lugar certo, acompanhando, e não liderando o prato.
O vinho, um Redoma Reserva branco 2009 (€ 55), traz mineralidade e casa-se com o menu do mar como se tivesse sido feito especificamente para ele. Um vinho de corte com a cara do Douro: uvas rabigato, codega, donzelinho, viosinho e arinto.
No chamado "menu Douro", timbale de maçã e foie para começar. Destaque para o carrê de cordeiro com purê de queijo de cabra, entre os pratos principais.
De tempos em tempos, o chef dava uma saída da cozinha para supervisionar o salão. Olhava com cara austera, repreendia o cumim apressado - "sem correr, sem correr" -, cumprimentava as pessoas nas mesas.
Ao chegar à mesa dos brasileiros, abre-se em sorrisos. Rapidamente torna-se íntimo, pede espaço para sentar, começa a conversar sobre gastronomia. Fala da alma que a cozinha precisa ter, do que é expressar uma cultura, do que é expressar uma região. Seu livro "Rui Paula - Uma Cozinha no Douro" (€ 35 na Fnac de Lisboa) é um sucesso. Tornou-se um manifesto regional ao propor receituário moderno ancorado em produtos e nos sabores antigos do país.
Ao saber que iríamos para o interior, o chef se exalta ao falar sobre o DOC, seu primeiro restaurante. "Vá lá. Minha mulher está lá, o lugar é lindo, a região é maravilhosa", diz, de modo torrencial.
Alguns dias depois, a confirmação de toda a propaganda feita por ele. Uma certa dose de aventura apimenta a ida, por causa das estradas extremamente sinuosas. Perto de Tormes, uma placa mostra: "Aqui começa o caminho de Jacinto". Pois ali está o lugar descrito por Eça em "A Cidade e as Serras". Ali estão as serras, escarpadas, sinuosas.
Seguindo o Douro, "entre a Régua e o Pinhão" (ou seja, entre essa duas cidades da região), aparece o primeiro grande outdoor com a cara de Rui Paula. Não há dúvidas de que seja estrela no Douro profundo - e ele sabe explorar isso.
O DOC, em si, impressiona. Salão também muito bem decorado e, a maior pérola, um deque sobre o rio - aliás, todo o restaurante está sobre o rio (veja a foto ao lado). Também constantemente cheio. Carros imponentes na porta, de placas de locais diversos, mostram que as pessoas vêm de longe.
É domingo, fim da tarde, e a casa acabou de fechar. Mais uma vez a recepcionista se compadece do casal brasileiro. Reabre a cozinha e pede ao sous-chef para preparar algo, um robalo com risoto de açafrão. "Só para vocês não irem embora com fome."
Para terminar, domo de chocolate e espuma de framboesa, acompanhado de Quinta do Crasto LBV. Pagamos com o sentimento de que aquilo não tinha preço.

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