Uma cozinha entre a cidade e as serras
"Desconfiado, provou o caldo, que era de galinha e
rescendia. Provou - e levantou para mim, seu camarada de misérias, uns olhos
que brilharam, surpreendidos. Tornou a sorver uma colherada mais cheia, mais considerada.
E sorriu, com espanto: - Está bom! (...) Estava precioso: tinha fígado e tinha
moela. O seu perfume enternecia." (...)
"Diante do louro
frango assado no espeto e da salada que ele apetecera na horta, agora temperada
com um azeite da serra digno dos lábios de Platão, terminou por bradar: - É
divino! - Mas nada o entusiasmava como o vinho de Tormes, caindo de alto, da
bojuda infusa verde - um vinho fresco, esperto, seivoso, e tendo mais alma,
entrando mais na alma, que muito poema ou livro santo."
Em "A Cidade e as
Serras", Eça de Queirós descreve o deslumbramento do rico parisiense
Jacinto ante a simplicidade do campo. Ali, na mesa, ele descobria como a alma
daquela região do Douro se sobrepunha ao vazio existencial da grande cidade. Talvez
esteja aí um paralelo com o chef Rui Paula, oriundo da mesma região onde se
passa a trama de Eça. Estrela gastronômica em Portugal - no Douro, mais
especificamente -, o chef pratica uma cozinha focada em sua personalidade, em
que cada toque mostra de onde veio. Ao fim, entretanto, ele se reconcilia com a
cidade e, quase como o personagem de Eça, usa o que de melhor
"tecnológico" tem à disposição.
Pois bem, Rui Paula é dono de
dois restaurantes, o DOP, na cidade do Porto, e o DOC, debruçado sobre o rio
Douro em Folgosa, bem no meio de Portugal, na metade do caminho entre o mar e a
Espanha.
Primeiro, o DOP, no Porto.
Após passar por ruas íngremes
do centro histórico da cidade, chega-se ao Largo de São Domingos. O restaurante
está constantemente cheio. Sexta-feira à noite, então, nem se diga.
Na porta, a recepcionista é
muito simpática, pede desculpas ao casal de brasileiros que chega sem reservas.
"Impossível", diz com um sorriso amarelo, talvez pensando na cara de
pau dos dois ali diante dela. Mas, após um pouco da insistência brasiliana, ela
concorda em, sem compromisso, abrir espaço num sofá e numa poltrona, na
inglória espera por uma improvável desistência.
A cara de pau se paga. Uma
desistência, enfim. "É raro", diz a moça da porta, enquanto se dirige
para a mesa bem diante da saída da cozinha. Normalmente essa é considerada uma
mesa de má localização, mas no nosso caso é perfeita para que se possa observar
o movimento da casa.
Taças de cristal, porcelana
bonita, serviço atencioso, decoração moderna, de linhas retas e simples. Não é
um restaurante "campestre". Os detalhes mostram a pretensão de se
colocar como um local internacional, atento às tendências.
Dois menus-degustação são
pedidos para a mesa (€ 70 cada).
O chamado "menu mar"
começa pelo carpaccio de vieiras com ceps. Aguça a curiosidade sobre o que vem
adiante. Como entrada quente, creme de lagostins com lavagante (um crustáceo
assemelhado à lagosta). Delicado.
Aos pratos principais então:
bacalhau cozido a baixíssima temperatura, seguido de caviar de ouriço do mar e,
por fim, de linguado com molho basílico. Perfeitos na conjunção de sabores, na
execução. Há espumas sim, mas elas estão no lugar certo, acompanhando, e não
liderando o prato.
O vinho, um Redoma Reserva
branco 2009 (€ 55), traz mineralidade e casa-se com o menu do mar como se
tivesse sido feito especificamente para ele. Um vinho de corte com a cara do
Douro: uvas rabigato, codega, donzelinho, viosinho e arinto.
No chamado "menu
Douro", timbale de maçã e foie para começar. Destaque para o carrê de cordeiro
com purê de queijo de cabra, entre os pratos principais.
De tempos em tempos, o chef
dava uma saída da cozinha para supervisionar o salão. Olhava com cara austera,
repreendia o cumim apressado - "sem correr, sem correr" -,
cumprimentava as pessoas nas mesas.
Ao chegar à mesa dos
brasileiros, abre-se em sorrisos. Rapidamente torna-se íntimo, pede espaço para
sentar, começa a conversar sobre gastronomia. Fala da alma que a cozinha
precisa ter, do que é expressar uma cultura, do que é expressar uma região. Seu
livro "Rui Paula - Uma Cozinha no Douro" (€ 35 na Fnac de Lisboa) é
um sucesso. Tornou-se um manifesto regional ao propor receituário moderno
ancorado em produtos e nos sabores antigos do país.
Ao saber que iríamos para o
interior, o chef se exalta ao falar sobre o DOC, seu primeiro restaurante.
"Vá lá. Minha mulher está lá, o lugar é lindo, a região é
maravilhosa", diz, de modo torrencial.
Alguns dias depois, a
confirmação de toda a propaganda feita por ele. Uma certa dose de aventura
apimenta a ida, por causa das estradas extremamente sinuosas. Perto de Tormes,
uma placa mostra: "Aqui começa o caminho de Jacinto". Pois ali está o
lugar descrito por Eça em "A Cidade e as Serras". Ali estão as
serras, escarpadas, sinuosas.
Seguindo o Douro, "entre a
Régua e o Pinhão" (ou seja, entre essa duas cidades da região), aparece o
primeiro grande outdoor com a cara de Rui Paula. Não há dúvidas de que seja
estrela no Douro profundo - e ele sabe explorar isso.
O DOC, em si, impressiona.
Salão também muito bem decorado e, a maior pérola, um deque sobre o rio -
aliás, todo o restaurante está sobre o rio (veja a foto ao lado). Também
constantemente cheio. Carros imponentes na porta, de placas de locais diversos,
mostram que as pessoas vêm de longe.
É domingo, fim da tarde, e a
casa acabou de fechar. Mais uma vez a recepcionista se compadece do casal
brasileiro. Reabre a cozinha e pede ao sous-chef para preparar algo, um robalo
com risoto de açafrão. "Só para vocês não irem embora com fome."
Para terminar, domo de
chocolate e espuma de framboesa, acompanhado de Quinta do Crasto LBV. Pagamos
com o sentimento de que aquilo não tinha preço.
Nenhum comentário:
Postar um comentário