Como o
homem fala
E canta, chora, cochicha, geme e grita,
graças a um dos mais versáteis instrumentos da natureza: as cordas vocais. A
ciência já consegue ver por dentro toda a sonora riqueza da voz humana.
A plateia fica de boca fechada, sem dar um pio, para
ouvir uma ária da ópera Carmen. A intérprete é Celine Imbert, paulistana de 38
anos, dona de uma elogiadíssima voz de
soprano, a mais rara e requintada que uma cantora lírica pode ter. Mas o
silêncio dos ouvintes naquela apresentação tinha um motivo incomum. A cigana
criada no século passado pelo escritor francês Prosper Mérimée e transformada
em ópera por seu conterrâneo Georges Bizet (1838-1875) provavelmente jamais
havia sido vista dessa maneira: em vez da dança sensual da personagem,
assistia-se então à coreografia de um tubo rosado e oco, contraindo-se e
esticando-se no ritmo da música. Não se tratava de uma montagem performática de
Carmen, mas da gravação de um vídeo para a Escola Paulista de Medicina, há poucos
meses, Celine exibia a laringe a um
distinto público de pesquisadores, graças a um equipamento desenvolvido para
possibilitar que os cientistas compreendam a harmonia existente entre os gritos
e os sussurros, os graves e os agudos da voz humana.
Há mais tempo do que a ciência é capaz de
rastrear, o homem aprendeu
a erguer, com a fala, a esplêndida catedral da linguagem, o que lhe permitiu
conquistar para sempre um lugar à parte entre todos os seres vivos. Mas, até há
alguns anos, existia uma única maneira de observar os mecanismos davoz: segurando-se a língua
para pôr um espelho dentro da garganta. Nessa situação desconfortável, o máximo
que alguém consegue é soltar grunhidos. Assim, aos estudiosos restava apenas
deduzir a fisiologia a partir da anatomia, imaginando como seria a ação das cordas vocais, o par de
músculos produtores do som, revestidos de mucosas,
que, apesar do nome sugestivo, em nada lembram violinos ou harpas. Aliás, a
julgar pela aparência, esses músculos merecem a designação menos elegante de
pregas vocais, preferida pelos pesquisadores. Hoje sua imagem ficou mais
nítida: ao se introduzir uma delgada fibra ótica (ligada a uma câmera de TV)
pelo nariz até a laringe, como se tornou
possível fazer, o aparelho fonador permanece livre e desimpedido para que a pessoa
examinada fale normalmente ou, como no caso de Celine Imbert, cante uma ária.
O vídeo mostra que, vez ou outra, quando a
cantora inspira, as duas cordas vocais relaxadas,
uma de cada lado, formam uma fenda triangular que se chama glote. Dessa
maneira, o ar trafega sem obstáculos até os pulmões, onde abastece o organismo
de oxigênio. Quando o diafragma, o grande músculo que separa o tórax do
abdômen, expulsa o ar para fora, pode-se romper o silêncio. Se alguém resolve
soltar avoz, o cérebro ordena que
os músculos da laringe fechem
a glote. O ar então fica no meio do caminho, preso no canal da traqueia, entre
os pulmões comprimidos pelo diafragma e a glote inapelavelmente cerrada. Mas,
tamanho acaba sendo o aperto ali, que o ar, sob pressão, força a passagem
estreita entre as cordas vocais e
estas, imediatamente depois da fuga, voltam a se unir. O pouco do gás que
escapa, no entanto, é suficiente para empurrar partículas de ar que estavam na laringe; elas, por sua vez,
empurram outras partículas e assim por diante, como pedras de dominó caindo uma
depois de outra. O traçado dessa cadeia de partículas teria a forma de uma onda
e de fato se trata de uma onda sonora. Na verdade, as cordas vocais abrem
e fecham tão rápido que não se pode notar o movimento a olho nu. Por esse
motivo, ao examinar a laringe com
fibra ótica, os médicos costumam recorrer a uma luz estroboscópica, como as
usadas em discotecas, que dão a ilusão da imagem em câmara lenta. Nas crianças,
o movimento se repete mais de 250 vezes por segundo. Com isso, a vibração do ar
é grande e o resultado é uma onda mais condensada de energia ou de alta frequência,
que gera sons mais agudos. Para preservar essa voz fina
e angelical é que em tempos idos surgiu a desumana idéia de castrar rapazes
destinados ao canto. Isso porque, na adolescência, a entrada em cena dos
hormônios sexuais, nos meninos e nas meninas, aumenta a massa muscular do
organismo; as cordas vocais, em coro com
essa transformação, tornam-se mais espessas e longas desse modo, também mais
resistentes à vibração.
Nas mulheres, as cordas passam a se
movimentar entre 200 e 220 vezes por segundo, enquanto nos homens o ciclo
vibratório é de cerca de 110 vezes. Todos podem ouvir o efeito da diferença: a voz engrossa porque a frequência
da onda sonora se torna mais baixa. Até que a laringe se
acostume com a transformação, a voz desafina,
o que fica mais evidente nos homens, nos quais a mudança é drástica. No
entanto, mesmo entre adultos, ninguém fala no mesmo tom o tempo inteiro.
"A laringe ajusta
o tamanho conforme a altura do som, grave ou agudo",
explica o otorrinolaringologista Paulo Pontes, da Escola Paulista de Medicina,
um dos maiores especialistas brasileiros em laringe. Ele estende a mão
e a compara a uma corda vocal: "Ao fechar a mão, a pele do dorso se estira
e fica mais tensa; o mesmo ocorre com a mucosa da prega vocal quando ela é
estirada pelo alongamento para produzir um som mais
agudo. Ao se encurtar, a prega fica menos tensa mais massa vibra e o som é
mais grave. O mesmo acontece com a mão aberta: a pele relaxa, podendo formar
mais dobras."
Para falar em alto e bom tom, porém, é
preciso muito mais do que cordas vocais bem afinadas
pela laringe: é necessária uma
lubrificação adequada. Assim, a voz enrouquece
quando se fica gripado, porque o excesso de muco segura as cordas vocais. O inverso, a
secura, tampouco é o ideal. "É comum querer gritar de nervoso e a voz não
sair", exemplifica Pontes, porque a tensão chega a secar as glândulas
salivares e, sem lubrificação, as cordas vocais não
conseguem vibrar direito." Contudo, se dependesse exclusivamente do que se
passa na laringe,
o homem viveria
quase mudo, pois o som produzido ali é tão
baixo quanto o de um cochicho. Por isso, ao longo da evolução da espécie,
órgãos a serviço das funções respiratória e digestiva foram se adaptando para o
trabalho extra de modular a voz humana.
As ondas sonoras geradas na glote atravessam
um verdadeiro sistema de amplificadores, formado pelos próprios pulmões, mais a laringe, a faringe, a boca,
o nariz e por uma série de cavidades existentes nos ossos da face, os seios
paranasais. Ao entrar em uma dessas estruturas, chamadas caixas de ressonância,
é como se a onda sonora batesse em uma parede e ricocheteasse; desse modo,
acaba se chocando com outra onda sonora no caminho. Conforme a combinação
resultante do encontro, aquela primeira onda sonora pode ser amplificada,
tornando-se audível. Mas também ocorre o oposto uma onda atenuar outra. E
justamente o jogo de abafar ou de aumentar o volume de certos sons que dá ao homem uma voz quase
tão rica em nuances quanto a música de um piano. As cordas vocais são
como o samba de Tom Jobim: emitem uma nota só, o chamado tom fundamental;
outras notas podem entraros tons harmônicos, múltiplos do fundamental, mas a
base é uma só, de novo como na canção. Mesmo partindo de um único tom, o homem constrói
toda uma gama sonora. O médico Paulo Pontes disseca a proeza: "A onda do
tom fundamental, ao atravessar as caixas de ressonância, é ampliada apenas em
determinadas faixas conforme o som desejado.
Assim, podemos emitir, por exemplo, o som de vogais
diferentes". Tudo é calculado, embora não se perceba. O sistema nervoso
comanda músculos, do abdômen até a face, de tal maneira que a onda sonora
termina sendo guiada para determinados pontos de determinadas caixas de ressonância,
sempre de acordo com o som.
É fácil notar, por exemplo, as alterações que
ocorrem na boca, que fica escancarada para emitir um "a" de
exclamação ou faz bico para produzir o acachapante "u" de uma vaia.
Assim como a boca, outras caixas de ressonância, graças à ação muscular, também
vivem mudando de formato. "É claro que uma bela voz vai
depender de fatores físicos, como estruturas do aparelho fonador perfeitas e
bem-proporcionadas", cita Pontes. "No entanto, mais importante do que
isso, é saber guiar a onda sonora até a caixa de ressonância certa. É essa
sensibilidade que os cantores têm de especial." De fato, o jogo de caixas
de ressonância é responsável pelos atributos estéticos da voz. É o trajeto da onda
sonora, abafada em algumas faixas, amplificada em outras, que resulta em um tom
aveludado como o de um locutor de rádio de fim de noite ou grasnante como o de
um imitador do Pato Donald. No final, cada um cria maneiras exclusivas de gerar
seus sons, com esse ou aquele conjunto de movimentos musculares.
"Por isso, a voz é uma
espécie de impressão digital sonora", compara a fonoaudióloga paulista
Mara Behlau, a única especialista credenciada a dar pareceres em tribunais
brasileiros sobre identificação de vozes. Ela trabalhou junto com peritos
americanos na comparação de vozes gravadas ao telefone, quando as autoridades
italianas recorreram aos Estados Unidos ao investigar o sequestro e assassínio
do primeiro-ministro Aldo Moro, em 1978. Embora o fator desenvolvimento do
organismo também deva ser ouvido, a rigor o aparelho fonador é esculpido pelo
uso. Assim, os órgãos de fonação do brasileiro geram com facilidade os sete fonemas
vogais do português:a, é, ê, i, ó, ô, u. Isso explicaria a ginástica que é
para muitos brasileiros falar outras línguas. O inglês americano, por exemplo,
faz soar catorze fonemas vogais o dobro do que os músculos dos brasileiros se
habituaram a realizar. Que dizer então do sueco, que vocaliza 22 sons
vocálicos.
Antes de ser moldado, porém, o aparelho
fonador é capaz de aprender qualquer língua sem rastros de outros sons.
Análises feitas por computadores provam que os bebês no mundo inteiro emitem no
mesmo tom quatro tipos de sons. O primeiro é o grito do nascimento, algo que
humano algum será capaz de repetir na vida. "É um som peculiar,
pois serve para expulsar o líquido contido no trato respiratório",
esclarece Mara. Por sinal, o homem é o
único animal que grita ao nascer; os bichos costumam vir ao mundo calados;
provavelmente, especula- se, para não denunciar sua frágil presença a ouvidos
predadores.
A voz do
recém-nascido, qualquer que seja a sua origem, vai do tom mais grave ao mais
agudo até que a mãe perceba que ele sente fome. Mas, quando o choro se limita a
um único tom, insistente e monótono, é porque a voz reclama
de dor. Finalmente, os bebês também soltam sons anasalados, leves gemidos que
indicam prazer. "Para o resto da vida o homem associará
prazer e afeto à voz anasalada",
informa Mara. Segundo ela, existem apenas três línguas em que os tons anasalados
predominam: o português, o francês e o polonês. "Parte da fama de
românticos dos franceses e de sensualidade dos brasileiros se deve ao idioma
que eles falam", acredita a especialista.
"Cada emoção tem voz própria",
garante de seu lado o psicólogo Ailton Amélio da Silva, da Universidade de São
Paulo, que ensina o tema para alunos de pós-graduação. Quando Ailton começou a
estudar expressões faciais em filmes e novelas, há dez anos, descobriu que era
necessário tirar o som, porque a voz distrai,
chamando mais a atenção do que a imagem. Há quatro anos, ele inverteu o
processo e passou a ouvir apenas o som das
telenovelas. Com a ajuda de computadores, a gravação é fragmentada e os
segmentos, remontados ao acaso. O resultado são vozes que mantêm o tom e o
ritmo originais, mas que emitem ruídos sem sentido algum. "Com uma frequência
espantosa, os ouvintes costumam identificar a emoção de quem emitiu a voz", revela o
pesquisador.
Embora recentes, pesquisas nessa área já
indicam pistas valiosas. Quando alguém mente, por exemplo, a voz tende
a não oscilar de tom, como se o mentirosos temesse escorregar para a informação
verdadeira. Quem está feliz fala mais fino e mais alto, ao contrário da voz tristonha
e desanimada, mais baixa e mais grave. Fala grosso quem sente raiva, mas a voz afina
e baixa de volume em situação de constrangimento. "Em épocas primitivas,
quando a agressão fazia parte do convívio social, devia ser importante para
cada um perceber na hora se a voz do
outro revelava medo ou raiva", supõe Ailton. Algumas emoções, quando
constantes, podem prejudicar a voz, de acordo com a
fonoaudióloga Carla Miéle, do Hospital Albert Einstein, de São Paulo.
É o caso da tensão e da ansiedade. A
respiração curta do ansioso fornece pouco fôlego para a emissão de sons.
"Sem pressão suficiente do ar, as cordas vocais se
esforçam em dobro e deixam de trabalhar em sincronia", descreve Carla.
Surgem então ali nódulos, os famosos calos nas cordas vocais, um dos mais
comuns distúrbios de voz. O problema aparece
naqueles que abusam da voz, cantores, professores,
políticos, locutores, mães que vivem gritando com os filhos gente que, às
vezes, acredita que pigarrear ajuda a combater a rouquidão, um sonoro mito.
Felizmente, foi-se o tempo em que para resolver um problema de calos vocais a
vítima corria o risco de ficar calada para sempre. Hoje em dia, microcirurgias
retiram os calos, deixando as cordas vocais intactas.
Aliás, justamente porque a Medicina atual consegue observar as cordas vocais em
ação, como durante a audição de Celine Imbert, existe tratamento para a maioria
de seus males, sem afetar a voz dos donos
algo que deveria fazer os cientistas cantar de alegria.
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