Alimento para o espírito
Engana-se quem acha que a onda de pães gourmet é mais um
modismo de um mercado gastronômico ávido por novidades. A abertura de várias
casas em São Paulo e no Rio, nas próximas semanas, somada às que já existem,
confirma que o produto artesanal começa a ganhar seu merecido lugar na mesa
nacional. Já era hora de se produzirem aqui as mesmas delícias de crosta
crocante, com fermentação natural, que há muito tempo existem na Europa e nos
Estados Unidos.
Em São
Paulo, o epicentro desse movimento acontece no bairro boêmio da Vila Madalena,
onde acaba de completar um ano uma das melhores padarias da cidade, a Julice
Boulangère. Em maio, a poucos quarteirões dali, devem ser inauguradas mais
duas: a quarta unidade da Pão e a primeira filial brasileira da Le Pain
Quotidien, rede criada pelo belga Alain Coumont, que já tem 270 lojas em 17
países.
Outra
novidade paulistana é a Jelly Bread, que abre as portas neste mês, num endereço
sofisticado e tradicional da cidade, no Jardim Europa, onde durante décadas
funcionou o restaurante Pandoro. Apesar do nome inglês, quem faz os pães é o
italiano Raffaele Mostaccioli, que vive no Brasil há 20 anos e traz a cultura
da panificação como herança familiar de várias gerações. A padaria fica ao lado
do restaurante Girarrosto, pertence aos mesmos donos - Paulo Barros e Paulo
Kress - e terá entrada independente.
A
produção de pães começou no fim de fevereiro, apenas para atender aos
frequentadores do restaurante recém-aberto. Os pães que chegam à mesa
quentinhos, em pequenas tábuas, são os mesmos que serão vendidos na padaria. Há
vários tipos: italiano, ciabatta, centeio com erva-doce, integral. Todos
utilizam fermentação natural e são assados em baixa temperatura. Mostaccioli
pretende desenvolver receitas regionais italianas e francesas, além de técnicas
novas. 'O universo do pão é tão grande que sempre haverá novidades', diz ele,
feliz por trabalhar com um produto simples, cheio de significados - mesmo para
os não religiosos, é um alimento para compartilhar.
Os
ingredientes básicos são os mais simples: farinha, água, sal e fermento. Mas a
qualidade de cada um e a maneira de reuni-los fazem toda a diferença. O pão
francês, vendido nas padarias comuns em várias fornadas ao longo do dia, é cada
vez mais industrializado. As panificadoras compram dos grandes moinhos uma
pré-mistura de farinha, fermento e sal. Basta colocar água e o pão sai em
quatro horas. Mas os que utilizam fermento natural podem levar até 36 horas
para ficar prontos. Trabalhoso como no passado, esse estilo de produção
artesanal vive um momento de resgate em todo o mundo e começa a virar moda por
aqui.
Para
explicar a diferença entre as duas modalidades, Julice Vaz, proprietária da
Julice Boulangère, conta um pouco de sua rotina. Com dois dias de antecedência,
ela calcula o volume que pretende vender e prepara os pré-fermentos (em geral,
uma combinação de três tipos). No dia seguinte, os pães são amassados e
guardados numa câmara. Depois de 24 horas, começam a ser assados em várias
fornadas, conforme a necessidade. 'Quando o pão acaba, acaba - não há como dar
um jeito. Se calculei errado, deixo de vender', conta.
No ano
passado, quando abriu a loja, Julice gastava 250 quilos de farinha por mês.
Agora, usa duas toneladas. Mas seu crescimento é passo a passo. Se determinado
tipo de pão acabou no dia, na próxima programação ela faz duas unidades a mais.
E assim por diante. Atualmente, oferece mais de 40 variedades, que podem ser
compradas na loja ou consumidas nas mesas do pequeno café ao lado. O mais
vendido é o pão de linhaça com castanha-do-pará, que leva 80% de farinha
integral, como a maioria dos seus produtos. Apenas o brioche é 100% integral.
Isso porque ela acredita que a integralidade total não é do gosto do
brasileiro.
Curiosamente,
foi o desafio de fazer um produto 100% integral que levou o cearense Rafael
Rosa a abrir a Pão - Padaria Artesanal Orgânica, há cinco anos, em São Paulo.
Ele estudava hotelaria na Les Roches, famosa escola suíça, quando o empresário
e padeiro francês Lionel Poilâne (1945-2002) foi lá dar uma palestra. Anos
depois, ao conhecer a padaria Poilâne em Paris, que continua como uma das mais
prestigiadas da cidade, mesmo após a morte do proprietário num acidente, Rafael
decidiu estudar panificação. Mas seguiu para São Francisco, nos Estados Unidos,
onde a cultura de orgânicos é fortíssima.
De volta
ao Brasil, criou a Pão, primeira padaria artesanal de São Paulo somente com
ingredientes orgânicos. A dificuldade inicial foi achar fornecedores que
garantissem volume e frequência das entregas. O trigo, por exemplo, ele foi
encontrar no Paraná, numa produção agrícola familiar, que começou por fornecer
200 quilos por mês. Hoje, com três lojas e a caminho da quarta, o consumo
mensal subiu para uma tonelada e meia. A rede oferece nove variedades assadas
na pedra e elaboradas com farinha orgânica, sal do Himalaia, grãos, nozes ou
frutas secas.
No Rio de
Janeiro, o mercado para pães artesanais também é crescente, em especial no
bairro do Jardim Botânico. Foi ali que, em 2010, a La Bicyclette foi aberta por
Ana Paula Gentil e seu marido, o francês Henri Forcellino, antes professores do
Liceu Molière. Agora em abril, eles inauguram a primeira filial no Espaço Tom
Jobim, dentro do próprio Jardim Botânico, que também terá bar e café. Com os
pães, Ana Paula pretende difundir um modo de pensar e de viver: 'Não usamos
plásticos, não vendemos produtos industriais e damos preferência aos pequenos
produtores, à agricultura local, sustentável. Usamos muitos produtos
orgânicos'.
Nos
finais de semana, a La Bicyclette produz 500 croissants por dia. Os pães
especiais - de figo com erva-doce, damasco com avelã ou nozes com passas - têm
300 gramas e custam R$ 12. O gasto mensal de farinha é da ordem de duas
toneladas e deve aumentar. 'Temos alguns concorrentes surfando na onda dos pães
artesanais, e a demanda dos consumidores cariocas tende a crescer', afirma.
Sinal disso é que o chef Dominique Guerin, ex-pâtissier do restaurante Le Pré
Catalan, abriu em Copacabana, no fim de março, a Boulangerie Guerin, misto de
padaria artesanal e confeitaria.
Para não
correr riscos num mercado ainda desconhecido, o empresário paulistano Pedro
Robell trabalha apenas por encomenda. Ele abriu sua fábrica de pães artesanais
em 2005, em Pinhais, na Região Metropolitana de Curitiba (PR). A Casa Robell
fica em um condomínio fechado, e tem uma lojinha de fábrica. Atende
restaurantes, hotéis, bufês e um supermercado. O preço dos pães varia de R$ 12
a R$ 40 o quilo. A produção é bastante pequena e as instalações e equipe
permitem dobrá-la - coisa que Robell não está certo se acontecerá em breve. 'As
pessoas adoram meu pão, mas não querem pagar. Acho que em Curitiba, exceto
alguns clientes, a maioria ainda só se interessa por custo. Muitos empresários
ainda não perceberam que o pão não é apenas um segurador de recheio para sanduíches,
mas um ingrediente que precisa ser tratado com a mesma atenção que um salmão ou
outro produto nobre.'
Legendas:
Baguete
artesanal rústica da Jelly Bread, que abre as portas neste mês, em São Paulo
Em
sentido horário: na Pão, produto 100% integral; na Casa Robell, o naan indiano,
mas em forma de hambúrguer; na Julice Boulangère, pão de figo seco e provolone,
área externa para os clientes e a proprietária, Julice Vaz.
Box:
Onde
encontrar
? Casa
Robell: Rua Jaguariaíva, 101, Alphaville Graciosa, Pinhais, PR.
.
?
Boulangerie Guerin: Av. Nossa Senhora de Copacabana, 920, loja A,
Rio de
Janeiro, RJ
? Jelly
Bread: Avenida Cidade Jardim, 60,
Jardim
Europa, São Paulo, SP. Inauguração prevista para abril
? Julice
Boulangère: Rua Deputado Lacerda Franco, 536, Pinheiros.
São
Paulo, SP. .
? La
Bicyclette: Rua Pacheco Leão, 320, Jardim Botânico, Rio de Janeiro, RJ.
.
? Pão -
Padaria Artesanal Orgânica: Rua Bela Cintra, 1.618, Jardins.
São
Paulo, SP. .
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