RERUM NOVARUM
CARTA ENCÍCLICA DE SUA SANTIDADE O PAPA
LEÃO XIII SOBRE A CONDIÇÃO DOS OPERÁRIOS
15 de maio de 1891
Introdução
1. A sede de inovações que há muito tempo se apoderou das sociedades e
as e as têm numa agitação febril, devia, tarde ou cedo, passar das regiões
políticas para a esfera vizinha da economia social. Efetivamente, os progressos
incessantes da indústria, os novos caminhos em que entraram as artes, a
alteração das relações entre os operários e os patrões, a influência da riqueza
nas mãos dum pequeno número ao lado da indigência da multidão, a opinião enfim
mais avantajada que os operários formam de sí mesmos, e a sua união mais
compacta, tudo isso, sem falar na corrupção dos costumes, deu em resultado
final um temível conflito.
Por toda parte, os espíritos estão apreensivos e numa ansiedade
expectante, o que por si só basta para mostrar quantos e quão graves interesses
estão em jogo. Essa situação preocupa e põem ao mesmo tempo em exercício o
gênio dos doutos, a prudência dos sábios, as deliberações das reuniões
populares, a perspicácia dos legisladores e os conselhos dos governantes, e não
há, presentemente, outra causa que impressione com tanta veemência o espírito
humano.
É por isso que, Veneráveis Irmãos, o que em outras ocasiões temos feito,
para bem da Igreja e da salvação comum dos homens, em Nossas Encíclicas sobre a
soberania política, a liberdade humana, a constituição cristã dos Estados
(aluda-se aqui às Encíclicas "Diuturnum" 1831, "Immortale
Dei" 1885, "Libertas" 1888) e outros assuntos análogos,
refutando, segundo Nos pareceu oportuno, as opiniões errôneas e falazes, o julgamos
dever repetir hoje e pelos mesmos motivos, falando-vos da Condição dos
Operários. Já temos tocado essa matéria muitas vezes, quando se Nos tem
proporcionado o ensejo; mas a consciência de Nosso cargo Apostólico impõe-nos
como um dever tratar nessa Encíclica mais explicitamente e com maior
desenvolvimento, a fim de pôr em evidência os princípios duma solução, conforme
à justiça e à equidade. O problema nem é fácil de resolver, nem isento de
perigos. É difícil, efetivamente, precisar com exatidão os direitos e os
deveres que devem, ao mesmos tempo, reger a riqueza e o proletariado, o capital
e o trabalho. Por outro lado o problema não é sem perigos, porque não poucas vezes
homens turbulentos e astuciosos procuram desvirtuar lhe e aproveitam-no para
excitar as multidões e fomentar desordem.
Causas do conflito
1. Em todo caso, estamos persuadidos, e todos concordam nisto, que é
necessário, com medidas prontas e eficazes, vir em auxílio dos homens das
classes inferiores, atendendo a que eles estão, pela maior parte, numa situação
de infortúnio e de miséria imerecida. O século passado destruiu, sem as
substituir por alguma coisa, as corporações antigas, que eram para eles uma
proteção; os princípios e o sentimento religioso desapareceram das leis e das
instituições públicas, e assim, pouco a pouco, os trabalhadores, isolados e sem
defesa, têm-se visto, com o decorrer do tempo, entregues à mercê de senhores
desumanos e à cobiça de uma concorrência desenfreada. A usura voraz veio
condenar ainda mais o mal. Condenada muitas vezes pelo julgamento da Igreja,
não tem deixado de ser praticados sob outra forma por homens, ávidos de
ganância, e de insaciável ambição. A tudo isso deve acrescentar-se o monopólio
do trabalho e dos papéis de crédito, que se tornaram um quinhão de um pequeno
número de ricos e de opulentos, que impõe assim um julgo quase servil à imensa
multidão dos operariados.
A solução socialista
2. Os socialistas, para curar este mal, instigam nos pobres o ódio
contra os que possuem, e pretendem que toda a propriedade de bens particulares
deve ser suprimida, que os bens de um indivíduo qualquer dever ser comuns a
todos, e que a sua administração deve voltar para os Municípios ou para o
Estado. Mediante esta transladação das propriedades e estas iguais repartições
das riquezas e das comodidades que elas proporcionam entre os cidadãos,
lisonjeiam-se de aplicar um remédio eficaz aos males presentes. Mas semelhante
teoria, longe de ser capaz de por termo ao conflito, prejudicaria ao operário
se fosse posto em prática. Outrossim, é sumamente injusta, por violar os
direitos legítimos dos proprietários, viciar as funções do Estado e tender para
a subversão completa do edifício social.
A propriedade particular
3. De fato, como é fácil perceber, a razão intrínseca do trabalho, o fim
imediato visado pelo trabalhador, é conquistar um bem que possuirá como próprio
e como pertencendo-lhe; porque, se põe à disposição de outrem as suas forças e
à sua indústria, não é evidentemente, por outro motivo senão para conseguir com
que possa prover à sua sustentação e às necessidades da vida, e espera do seu
trabalho não só o direito ao salário, mas ainda um direito estrito, e rigoroso
para usar dele como entender. Portanto, se, reduzindo as suas despesas, chegou
a fazer algumas economias, e se, para assegurar a sua conservação, as emprega,
por exemplo, num campo, torna-se evidente que esse campo não é outra coisa
senão o salário transformado: o terreno assim adquirido torna-se propriedade do
artista com o mesmo título que a remuneração do seu trabalho. Mas, quem não vê
que é precisamente nisso que consiste o direito de propriedade mobiliária?
Assim, essa conversão em propriedade particular em propriedade coletiva, tão
preconizada pelo socialismo, não teria outro efeito senão tornar a situação operária
mais precária, retirando-lhes a livre disposição de seu salário e
roubando-lhes, por isso mesmo, toda a esperança e toda possibilidade de
engrandecerem o seu patrimônio e melhorarem a sua situação.
4. Mas, e isso parece ainda mais grave, o remédio proposto está em
oposição flagrante com a justiça, porque a propriedade particular e pessoal é,
para o homem, de direito natural. Há, efetivamente, sobre esse ponto de vista,
uma grandíssima diferença entre o homem e os animais destituídos de razão.
Estes não se governam a si mesmos; são dirigidos e governados pela natureza,
mediante um duplo instinto, que, por um lado, conserva a sua atividade sempre
viva e lhes devolve as forças, por outro, provoca e circunscreve ao mesmo tempo
cada um dos seus movimentos. O primeiro instinto leva-os à conservação e à
defesa da sua própria vida; o segundo, à propagação da espécie; e este duplo
resultado obtêm-no facilmente pelo uso das coisas presentes e postas ao seu
alcance. Por outro lado seriam incapazes de transpor esses limites, porque são
movidos pelos sentidos e por cada objeto particular que os sentidos percebem.
Muito diferente é a natureza humana. Primeiramente, no homem reside, em sua
perfeição, toda virtude da natureza sensitiva, e desde logo lhe pertence, não
menos que a esta, gozar dos objetos físicos e corpóreos. Mas a vida sensitiva
ainda mesmo possuída em toda a sua plenitude, não só não abraça toda a natureza
humana, mas é - lhe muito inferior e própria para lhe obedecer e ser-lhe
sujeita. O que em nós se avantaja o que nos faz homens, nos distingue
essencialmente do animal, é a razão ou a inteligência, e em virtude desta
prerrogativa deve reconhecer-se ao homem não só a faculdade geral de usar das
coisas exteriores, mas ainda o direito estável e perpétuo de as possuir, tanto
as que se consomem pelo uso, como as que permanecem depois de nos terem
servido.
Uso comum dos bens criados e propriedade particular deles
6. Uma consideração mais profunda da natureza humana vai sobressair
melhor ainda essa verdade. O homem abrange pela sua inteligência uma infinidade
de objetos, e às coisas presentes acrescenta e prende as coisas futuras; além
disso é, senhor das suas ações; também sob a direção da lei eterna e sob o governo
universal da Providência divina, ele é, de algum modo para si a sua lei e a sua
providência. É por isso que tem o direito de escolher as coisas que julgar mais
aptas, não só para prover o presente, mas ainda o futuro. De onde se segue que
deve ter sob seu domínio não só os produtos da terra, mas também a própria
terra, que, pela sua fecundidade, ele vê estar destinada a ser sua fornecedora
no futuro. As necessidades do homem repetem-se perpetuamente: satisfeitas hoje,
renascem amanhã com novas exigências. Foi preciso, portanto, para que ele
pudesse realizar o seu direito em todo o tempo, que a natureza pusesse à sua
disposição um elemento estável e permanente, capaz de lhe fornecer
perpetuamente os meios. Ora esse elemento só podia ser a terra, com os seus
recursos sempre fecundos. E não se apele para a providência do Estado, porque o
Estado é posterior ao homem, e antes que ele pudesse formar-se já o homem já
havia recebido da natureza o direito de viver e proteger a sua existência. Não
se opunha também à legitimidade da propriedade particular o fato de que Deus
concedeu a terra a todo o gênero humano para o gozar, porque Deus não a
concedeu aos homens para que a dominasse confusamente todos juntos. Tal não é o
sentido dessa verdade. Ela significa, unicamente, que Deus não assinou uma
parte a nenhum homem em particular, mas quis deixar a limitação das propriedades
à indústria humana e às instituições dos povos. Aliás, posto que dividida em
propriedades particulares, a terra não deixa de servir à utilidade comum de
todos, atendendo a que ninguém há entre os mortais que não se alimente do
produto dos campos. Quem os não tem, supre-os pelo trabalho, de maneira que se
pode afirmar, com toda a verdade, que o trabalho é o meio universal de prover
às necessidades da vida, quer ele se exerça num terreno próprio, quer em alguma
arte lucrativa cuja a remuneração, apenas, sai dos produtos múltiplos da terra,
com os quais ela se comuta. De tudo isso resulta, mais uma vez, é plenamente
conforme à natureza. A terra, sem dúvida, fornece ao homem com abundância as
coisas necessárias para a conservação da sua vida e ainda para o seu
aperfeiçoamento, mas não poderia fornecê-las sem a cultura e sem os cuidados do
homem. Ora, que faz o homem consumindo os recursos do seu espírito e as forças
do seu corpo em procurar esses bens da natureza? Aplica, para assim dizer, a si
mesmo a porção da natureza corpórea que cultiva e deixa nela como que certo
cunho da sua pessoa, a ponto que, com toda a justiça, esse bem será possuído de
futuro como seu, e não será lícito a ninguém violar o seu direito de qualquer
forma que seja.
7. A força destes raciocínios é de uma evidência tal, que chegamos a
admirar como certos partidários de velhas opiniões podem ainda contradizê-los,
concedendo sem dúvida ao homem particular o uso do solo e os frutos dos campos,
mas recusando o direito de possuir, na qualidade de proprietário, esse solo em
que edificou a porção da terra que edificou. Não veem que despojam assim esse
homem do fruto do seu trabalho; porque, afinal, esse campo amanhado com arte
pela mão do cultivador, mudou completamente de natureza: era selvagem, ei-lo
arroteado; de infecundo, tornou-se fértil; o que o tornou melhor, está inerente
ao solo e confunde-se de tal forma com ele, que em grande parte seria
impossível separá-lo. Suportaria a justiça que um estranho viesse atribuir-se
esta terra banhada pelo suor de que a cultiva. Do mesmo modo que o efeito segue
a causa, assim é justo que o fruto do trabalho pertença ao trabalhador.
É, pois, com razão, que a universalidade do gênero humano, sem se deixar
mover pelas opiniões contrárias dum pequeno grupo, reconhece, considerando
atentamente a natureza, que nas suas leis reside o primeiro fundamento da
repartição dos bens e das propriedades particulares; foi com razão que que o
costume de todos os séculos sancionou uma situação tão conforme à natureza do
homem e à vida tranquila e pacífica das sociedades. Por seu lado, as leis
civis, que tiram o seu valor (veja-se Santo Tomás, Sum. Teo. I-II, q.95, a. 4),
quando são justas, da lei natural, confirmam esse mesmo direito e protegem-no
pela força.
Finalmente, a autoridade das leis divinas vem pôr lhe o seu selo,
proibindo, sob pena gravíssima, até mesmo o desejo do que pertence aos outros:
"Não desejarás a mulher do teu próximo, nem o seu boi, nem a sua serva,
nem o seu jumento, nem coisa alguma que lhe pertença" (Dt 5, 21).
A família e o Estado
8. Entretanto, esses direitos, que são inatos a cada homem considerado
isoladamente, apresentam-se mais rigorosos ainda, quando se consideram nas suas
relações e na sua conexão com os deveres da vida doméstica. Ninguém põe em
dúvida que, na escolha de um gênero de vida, seja lícito cada um seguir o
conselho de Jesus Cristo sobre a virgindade, ou contrair um laço conjugal.
Nenhuma lei humana poderia apagar de qualquer forma o direito natural e
primordial de todo homem ao casamento, nem circunscrever o fim principal para
que ele foi estabelecido desde a origem: "Crescei e
multiplicai-vos"(Gen 1,28). Eis, pois, a família, isto é, a sociedade
doméstica, sociedade muito pequena certamente, mas real e anterior a toda
sociedade civil, à qual, desde logo, será forçosamente necessário atribuir
certos direitos certos deveres absolutamente independentes do Estado. Assim, este
direito de propriedade que Nós, em nome da natureza, reivindicamos para o
indivíduo, é preciso agora transferi-lo para o homem constituído chefe de
família. Isto não basta: passando para a sociedade doméstica, este direito
adquiri aí tanto maior força quanto mais extensão lá recebe a pessoa humana. A
natureza não impõe somente ao pai família o dever sagrado de alimentar e
sustentar os seus filhos; vai mais longe. Como os filhos refletem a fisionomia
de seus pais e são uma espécie de prolongamento da sua pessoa, a natureza
inspira-lhe o cuidado do seu futuro e a criação dum patrimônio que os ajude a
defender-se, na perigosa jornada da vida, contra todas as surpresas da má
fortuna. Mas, esse patrimônio poderá ele criá-lo sem a aquisição e a posse de
bens permanentes e produtivos que possa transmitir-lhes por via da herança?
Assim como a sociedade civil, a família, conforme atrás dissemos, é uma
sociedade propriamente dita, com a sua autoridade e o seu governo paterno, é
por isso que sempre indubitavelmente na esfera que determina o seu fim
imediato, ela goza, para a escolha e uso de tudo o que exige a sua conservação
e o exercício duma justa independência, de direitos pelo menos iguais aos da
sociedade civil. Pelo menos iguais dizemos Nós, porque a sociedade doméstica
tem sobre a sociedade civil uma prioridade lógica e uma prioridade real, de que
participam necessariamente os seus direitos e os seus deveres. E se os
indivíduos e as famílias, entrando na sociedade, nela achassem em, vez de
apoio, um obstáculo, em vez de proteção uma diminuição de seus direitos, dentro
em pouco a sociedade seria mais para evitar do que para procurar.
Querer, pois, que o poder civil invada arbitrariamente o santuário da
família, é um erro grave e funesto. Certamente, se existe algures uma família
que se encontre numa situação desesperada e que faça esforços vãos para sair
dela, é justo que, em tais extremos, o poder público venha em seu auxílio,
porque cada família é um membro da sociedade. Da mesma forma, se existe um lar
doméstico que seja teatro de graves violações dos direitos mútuos, que o poder
público intervenha para restituir a cada um os seus direitos. Não é isto
usurpar, as atribuições dos cidadãos, mas fortalecer os seus direitos,
protegê-los e defendê-los como convém. Todavia, a ação daqueles que presidem o
poder público não deve ir mais além; a natureza proíbe-lhes ultrapassar esses
limites. A autoridade paterna não podia ser abolida, nem absorvida pelo Estado,
porque ela tem uma origem comum com a vida humana. "Os filhos são alguma
coisa de seu pai"; são de certa forma uma extensão de sua pessoa, e, para
falar com justiça não é imediatamente por si que eles se agregam e se
incorporam na sociedade civil, mas por intermédio da sociedade doméstica em que
nasceram. Porque os "filhos são naturalmente alguma coisa de seu pai...
devem ficar sob a tutela dos pais até que tenham adquirido o livre
arbítrio" (Santo Tomás Sum. Teol. II – II, q. 10, a. 12). Assim,
substituindo a providência paterna pela providência do Estado, os socialistas
vão contra a justiça natural e quebram os laços de família. O comunismo, princípio
de empobrecimento.
9. Mas, além da injustiça de seu sistema, veem-se bem todas as suas
funestas consequências, a perturbação em todas as classes da sociedade, uma
odiosa e insuportável servidão para todos os cidadãos, porta aberta a todas as
invejas, a todos os descontentamentos, a todas as discórdias; o talento e a
habilidade privados dos seus estímulos, e, como consequência necessária, as
riquezas estancadas na sua fonte; enfim, no lugar dessa igualdade tão sonhada,
a igualdade na nudez, na indigência e na miséria. Por tudo o que Nós acabamos
de dizer, se compreende que a teoria socialista da propriedade coletiva deve
absolutamente repudiar-se como prejudicial àqueles mesmos a que se quer
socorrer, contrária aos direitos naturais dos indivíduos, como desnaturando as
funções do Estado, e perturbando a tranquilidade pública. Fique, pois, bem
assente que o princípio fundamental a estabelecer para aqueles que querem
sinceramente o bem do povo, é a inviolabilidade da propriedade particular.
Expliquemos agora onde convém procurar o remédio tão desejado.
A Igreja e a questão social
10. É com toda a confiança que Nós abordamos este assunto, e em toda a
plenitude de Nosso direito; porque a questão de que se trata é de tal natureza,
que, a não se apelar para a religião e para a Igreja, e impossível
encontrar-lhe uma solução eficaz. Ora, como é principalmente a Nós que estão
confiadas a salvaguarda da religião e a dispensão do que é de domínio da
Igreja, calarmo-nos seria aos olhos de todos trair o Nosso dever. Certamente
uma questão desta gravidade demanda ainda de outros a sua parte de atividade e
de esforços: isto é, dos governantes, dos senhores e dos ricos, e dos próprios
operários, de cuja sorte se trata. Mas, o que nós afirmamos sem hesitação, é a
inanidade da sua ação fora da Igreja. É a Igreja, efetivamente, que haure no
Evangelho doutrinas capaz ou de pôr termo ao conflito ou ao menos de suavizá-lo,
expurgando-o de tudo o que ele tenha de severo e áspero; a Igreja, que não se
contenta em esclarecer o espírito de seus ensinos, mas também se esforça em
regular, de harmonia com eles a vida e os costumes de cada um; a Igreja, que,
por uma multidão de instituições eminentemente benéficas, tende a melhorar a
sorte das classes pobres; a Igreja, que quer e deseja ardentemente que todas as
classes empreguem em comum as suas luzes e as suas forças para dar à questão
operária a melhor solução possível; a Igreja, enfim, que julga que as leis e a
autoridade pública devem levar a esta solução, sem dúvida com medida e com
prudência, a sua parte do concurso. Não luta, mas concórdia das classes.
11. O primeiro princípio é que o homem deve aceitar com paciência a sua
condição: é impossível que na sociedade civil todos sejam elevados ao mesmo
nível. É, sem dúvida, isto o que desejam os socialistas; mas contra a natureza,
todos os esforços são vãos. Foi ela, realmente, que estabeleceu entre os homens
diferenças tão múltiplas como profundas; diferenças de inteligência, de
talento, de habilidade, de saúde, de força; diferenças necessárias, de onde
nasce espontaneamente a desigualdade das condições. Esta desigualdade, por
outro lado, reverte em proveito de todos, tanto da sociedade como dos
indivíduos; porque a vida social requer um organismo muito variado e funções
muito diversas, e o que leva precisamente os homens a partilharem estas funções
é, principalmente, a diferença de suas respectivas condições. Pelo que diz
respeito ao trabalho em particular, o homem, mesmo no estado de inocência, não
era destinado a viver na ociosidade, mas, ao que a vontade teria abraçado
livremente como exercício agradável, a necessidade lhe acrescentou, depois do
pecado, o sentimento da dor e o impôs como uma expiação: "A terra será
maldita por tua causa; é pelo trabalho que tirarás com que alimentar-te todos
os dias da vida" (Gen 3, 17). O mesmo se dá com todas as outras calamidades
que caíram sobre o homem: neste mundo as calamidades não terão fim nem tréguas,
porque os funestos frutos do pecado são amargos, acres, acerbos, e acompanham
necessariamente o homem até o derradeiro suspiro. Sim, a dor e o suspiro são o
apanágio da humanidade, e os homens poderão ensaiar tudo, tudo tentar para bani-los;
mas não o conseguirão nunca, por mais recursos que empreguem, e por maiores
forças que para isso desenvolvam. Se há quem, atribuindo-se o poder fazê-lo,
prometa ao pobre uma vida isenta de sofrimentos e de trabalhos, toda de repouso
e de perpétuos gozos, certamente engana o povo e lhe prepara laços, onde se
ocultam, para o futuro, calamidades mais terríveis que as do presente. O melhor
partido consiste em ver as coisas tais quais são, e, como dissemos, em procurar
um remédio que possa aliviar os nossos males. O erro capital na questão
presente é crer que as duas classes são inimigas natas uma da outra, como se a
natureza tivesse armado os ricos e os pobres para se combaterem mutuamente num
duelo obstinado. Isto é uma aberração tal, que é necessário colocar a verdade
numa doutrina contrariamente oposta, porque assim como no corpo humano os
membros, apesar da sua diversidade, se adaptam maravilhosamente uns aos outros,
de modo que formam um todo exatamente proporcionado e que se poderá chamar
simétrico, assim também, na sociedade, as duas classes estão destinadas pela
natureza a unirem-se harmoniosamente e a conservarem-se mutuamente em perfeito
equilíbrio. Elas têm imperiosa necessidade uma da outra: não pode haver capital
sem trabalho, nem trabalho sem capital. A concórdia traz consigo a ordem e a
beleza; ao contrário, dum conflito perpétuo só podem resultar confusão e lutas
selvagens. Ora, para dirimir este conflito e cortar o mal na sua raiz, as
Instituições possuem uma virtude admirável e múltipla.
E, primeiramente, toda a economia das verdades religiosas, de que a
Igreja é guarda e intérprete, é de natureza a aproximar e reconciliar os ricos
e os pobres, lembrando às duas classes os seus deveres mútuos e, primeiro que
todos os outros, os que derivam da justiça.
Obrigações dos operários e dos patrões
12. Entre estes deveres, eis aqueles que dizem respeito ao pobre e ao
operário: deve fornecer integralmente e fielmente todo o trabalho a que se
comprometeu por contrato livre e conforme à equidade; não deve lesar o seu
patrão, nem nos seus bens, nem na sua pessoa; as suas reivindicações devem ser
isentas de violências, e nunca revestirem a forma de sedições; deve fugir dos
homens perversos que, nos seus discursos artificiosos, lhes sugerem esperanças
exageradas e lhes fazem grandes promessas, as quais só conduzem a estéreis
pesares e à ruína das fortunas.
Quanto aos ricos e aos patrões, não devem tratar o operário como
escravo, mas respeitar nele a dignidade do homem, realçada ainda pela do
cristão. O trabalho do corpo, pelo testemunho comum da razão e da filosofia
cristã, longe de ser um objeto de vergonha, faz honra ao homem, porque lhe
fornece um nobre meio de sustentar a sua vida. O que é vergonhoso e desumano e
usar dos homens como de vis instrumentos de lucro, e não os estimar senão na
proporção do vigor dos seus braços. O cristianismo, além disso, prescreve que
se tenha em consideração os interesses espirituais do operário e o bem da sua
alma. Aos patrões compete velar para que a isto seja dada plena satisfação, que
o operário, não seja entregue à sedução e às solicitações corruptoras, que nada
venha enfraquecer o espírito de família, nem os hábitos de economia. Proíbe
também aos patrões que imponham aos seus subordinados um trabalho superior às
suas forças ou em desarmonia com a sua idade ou o seu sexo.
Mas entre os deveres principais do patrão, é necessário colocar, em
primeiro lugar, o de dar a cada um o salário que convém. Certamente, para fixar
a justa medida do salário, há numerosos pontos de vista a considerar. Duma
maneira geral, recordem-se o rico e o patrão de que explorar a pobreza e a
miséria, e especular com a indigência, são coisas igualmente reprovadas pelas
leis divinas e humanas; que cometeria um crime de clamar vingança ao céu quem
defraudasse a qualquer pessoa no preço dos seus labores: "Eis que o
salário, que tendes extorquido por fraude aos vossos operários, clama contra
vós; e o seu clamor subiu até os ouvidos dos Deus dos Exércitos" (Tg 5,
4). Enfim os ricos devem precaver-se religiosamente de todo o ato violento,
toda a fraude, toda a manobra usurária que seja de natureza a atentar contra a
economia do pobre, e isto mais ainda, este é menos apto para defender-se, e
porque os seus haveres, por serem de mínima importância, revestem um caráter mais
sagrado. A obediência a estas leis, - perguntamos Nós, - não bastaria só, de
per si, para fazer cessar todo o antagonismo e suprimir lhe as causas? 13.
Todavia a Igreja, instruída e dirigida por Jesus Cristo, eleva as suas vistas
ainda mais alto; propões um corpo de preceitos mais completos, porque ambiciona
estreitar a união das duas classes até as unir uma à outra por laços de
verdadeira amizade. Ninguém pode Ter verdadeira inteligência da vida mortal,
nem estimá-la no seu justo valor, se não se eleva à consideração da outra vida
que é imortal. Suprimi esta, e imediatamente toda a forma e toda verdadeira
noção de honestidade desaparecerá; mais ainda: todo o universo se tornará um
impenetrável mistério. Quando estivermos abandonados esta vida, então somente
começaremos a viver; esta verdade que a mesma natureza ensina, é um dogma
cristão sobre o qual assenta, como sobre o seu primeiro fundamento, toda a
economia de religião. Não, Deus não nos fez para essas coisas frágeis e
caducas, mas para as coisas celestes e eternas; não nos deu esta terra como
nossa morada fixa, mas como lugar de exílio. Que abundeis em riquezas e outros
bens, chamados bens de fortuna, ou que estejais privados deles, isto nada
importa à eterna beatitude: o uso que fizerdes deles é o que interessa. Pela
sua superabundante redenção, Jesus Cristo não suprimiu as aflições que formam
quase toda a trama da vida mortal: fez delas estímulos de virtude e fontes de
mérito, de sorte que não há homem que possa pretender as recompensas eternas se
não caminhar sobre os traços sanguinolentos de Jesus Cristo: "Se sofremos
com ele, com ele reinaremos" (2 Tim 2, 12). Por outra parte, escolhendo
ele mesmo a cruz e os tormentos, minorou-lhes singularmente o peso e as
amarguras, e , a fim de nos tornar mais suportável o sofrimento, ao exemplo
acrescentou a sua graça e a promessa de uma recompensa sem fim: "Porque o
momento tão curto e tão ligeiro das aflições, que sofremos nesta vida, produz
em nós o peso eterno de uma glória soberana incomparável" (2 Cor 4, 17).
Assim, os afortunados deste mundo são advertidos que as riquezas não os isentam
da dor; que elas não são de nenhuma utilidade para a vida eterna, mas antes um
obstáculo (Mt 19, 32-24); que eles devem tremer diante das ameaças severas que
Jesus Cristo profere contra os ricos (Lc 6, 24-25); que, enfim virá o dia em
que deverão prestar a Deus, seu juiz, rigorosíssimas contas do uso que hajam
feito de sua fortuna.
Posse e uso das riquezas
14. Sobre o uso das riquezas, já a pura filosofia pôde delinear alguns
ensinamentos de suma excelência e suma importância; mas só a Igreja no-los pode
dar na sua perfeição e fazê-los descer do conhecimento a prática. O fundamento
dessa doutrina está na distinção da justa posse das riquezas e o seu legítimo
uso.
A propriedade particular, já o dissemos mais acima, é de direito natural
para o homem: o exercício deste direito é coisa não só permitida, sobretudo a
quem vive em sociedade, mas ainda absolutamente necessária (Santo Tomás, Sum.
Teo., II – II, q. 66 a. 2). Agora, se se pergunta em que é necessário fazer
consistir o uso dos bens, a Igreja responderá sem hesitação: "A esse
respeito o homem não deve ter as coisas exteriores por particulares, mas sim
por comuns, de tal sorte que facilmente dê parte delas aos outros nas suas
necessidades. É por isso que o Apóstolo disse: "Ordena aos ricos do século,
dar facilmente, comunicar as suas riquezas" (Santo Tomás, Sum. Teo., q. 65
a. 2). Ninguém certamente é obrigado a aliviar o próximo privando-se do
necessário, nem do de sua família; nem mesmo a nada suprimir do que as
conveniências ou a descendência impõe à sua pessoa: "Ninguém com efeito
deve viver contrariamente às conveniências"(Santo Tomás, Sum. Teo., II-II,
q. 32 a.6). Mas desde que haja suficientemente satisfeito à necessidade e ao
decoro, é um dever lançar o supérfluo no seio dois pobres: "Do supérfluo
dai esmolas" (Lc 11, 41). Ë um dever, não de estrita justiça, exceto nos
casos de extrema necessidade, mas de caridade cristã, um dever, por consequência,
cujo cumprimento se não pode conseguir pelas vias da justiça humana. Mas, acima
dos juízos do homem e das leis, há a lei e o juízo de Jesus Cristo, que nos
persuade de todas as maneiras a dar habitualmente esmolas: "É mais
feliz", diz ele, "aquele que dá do que aquele que recebe" (At
20,35), é o Senhor terá como dada ou recusada, a si mesmo a esmola que se haja
dada ou recusada aos pobres: "Todas as vezes que tenhais dado a esmola a
um de meus irmão é a mim que haveis dado" (Mt 25, 40). Eis, aliás, em
algumas palavras, resumo desta doutrina: Quem quer que tenha recebido da Divina
bondade maior abundância, quer de bens externos e do corpo, quer de bens da
alma, recebeu-os com o fim de os haver servir ao seu próprio aperfeiçoamento,
e, ao mesmo tempo, como ministro da Providência, ao alívio dos outros. "É
por isso, que quem tiver o talento da palavra, tome o cuidado em se não calar;
quem possuir superabundância de bens, não deixe a misericórdia entumecer-se no
fundo do seu coração; quem tiver a arte de governar, aplique-se com cuidado a
partilhar dela com seu irmão o exercício e os frutos" (São Gregório Magno,
in Evang. Hom. IX, n. 7).
Dignidade do trabalho
15. Quanto aos deserdados da fortuna, aprendam da Igreja que, segundo o
juízo do próprio Deus, a pobreza não é um opróbrio, e que não se deve corar por
ter que ganhar o seu pão do suor do seu rosto. “Ele, que de muito rico que era,
se fez indigente” (2 Cor 8, 9) para a salvação dos homens; que, filho de Deus e
Deus ele mesmo, quis passar aos olhos do mundo por filho de um artífice; que
chegou até a consumir grande parte de sua vida em trabalho mercenário:
"Não é ele o carpinteiro, filho de Maria" (Mt 6, 3). Quem tiver em
sua frente o modelo divino, compreenderá mais facilmente o que Nós vamos dizer:
que a verdadeira dignidade do homem e a sua excelência reside em seus costumes,
isto é, na sua virtude; que a virtude é o patrimônio comum dos mortais, ao
alcance de todos, dos pequenos e dos grandes, dos pobres e dos ricos; só a
virtude e os méritos, seja qual for a pessoa em quem se encontrem, obterão a
recompensa da eterna felicidade. Mais ainda: é para as classes desafortunadas
que o coração de Deus parece inclinar-se mais. Jesus Cristo chama aos pobres de
bem-aventurados (Mt 5, 3): convida com amor a virem a ele, a fim de consolar a
todos os que sofrem e que choram (Mt 11, 18); abraça com caridade mais terna os
pequenos e os oprimidos. Estas doutrinas foram, sem dúvida alguma, feitas para
humilhar a alma altiva do rico e torná-lo mais condescente, para reanimar a
coragem daqueles que sofrem e inspirar-lhes resignação. Com elas se acharia
diminuído um abismo procurado pelo orgulho, e se obteria sem dificuldades que
as duas classes se desses as mãos e as vontades se unissem na mesma amizade.
Comunhão de bens de natureza e de graça
16. Mas ainda é demasiado pouca a simples amizade: se se obedecer aos
preceitos do cristianismo, será no amor fraterno que a união se operará. De uma
parte e doutra, se saberá e compreenderá que os homens são todos absolutamente
nascidos de Deus, seu Pai comum; que Deus é o seu único e comum fim, que ele só
é capaz de comunicar aos anjos e aos homens uma felicidade perfeita e absoluta;
que todos eles foram igualmente resgatados por Jesus Cristo e restabelecidos
por ele na sua dignidade de filhos de Deus, e que assim um verdadeiro laço de
fraternidade os une, quer entre si, quer a Cristo, seu Senhor que é "o
primogênito de muitos irmãos" (Rom 8, 29). Eles saberão, enfim, que todos
os bens da natureza, todos os tesouros da graça, pertencem em comum e
indistintamente a todos do gênero humano, e que só os indignos são deserdados
dos bens celestes: "Se vós sois filhos, sois também herdeiros, herdeiros
de Deus, coerdeiros de Jesus Cristo" (Rom 8, 17).
Tal é a economia dos direitos e dos deveres que ensina a filosofia
cristã. Não se veria em breve prazo restabelecer-se a pacificação, se estes
ensinamentos pudessem vir a prevalecer nas sociedades?
Exemplo e magistério da Igreja
17. Entretanto, a Igreja não se contenta com indicar o caminho que leva
à salvação; ela conduz a esta e aplica por sua própria mão o conveniente
remédio. Ela dedica-se toda a ensinar e a educar os homens segundo os seus
princípios e a sua doutrina, cujas águas vivificantes ela tem o cuidado de
espalhar, tão longe e tão largamente quanto lhe é possível, pelo ministério dos
Bispos e do Clero. Depois, esforça-se por penetrar nas almas e por obter das
vontades que se deixam conduzir e governar pela regra dos preceitos divinos.
Este ponto é capital e de grandíssima importância, porque encerra como que o
resumo de todos os interesses que estão em litígio, e aqui a ação da Igreja é
soberana. Os instrumentos de que ela dispõe para tocar as almas, recebeu-os
para este fim, de Jesus Cristo, e trazem em si a eficácia duma virtude divina.
São os únicos aptos a penetrar até às profundezas do coração humano, que são
capazes de levar o homem a obedecer às imposições do dever, a dominar suas
paixões, amar a Deus e a seu próximo com uma caridade sem limites, a esmagar
corajosamente todos os obstáculos que dificultam o seu caminho na estrada da
virtude.
Neste ponto, basta passar ligeiramente em revista pelo pensamento os
exemplos da antiguidade. As coisas e fatos que vamos lembrar estão isentos de
controvérsia. Assim não é duvidoso que a sociedade civil foi essencialmente
renovada pelas instituições cristãs, que esta renovação teve por efeito elevar
o nível do gênero humano, ou, para melhor dizer, chamá-lo da morte à vida, e
guindá-lo a um alto grau de perfeição, como se não viu semelhante nem antes nem
depois, e não se verá jamais em todo o decurso dos séculos. Que, enfim, destes benefícios
foi Jesus Cristo o princípio, e deve ser o seu fim: porque assim como tudo
partiu dele, assim também tudo lhe deve ser referido. Quando, pois, o Evangelho
raiou no mundo, quando os povos tiveram conhecimento do grande mistério da
encarnação do Verbo e da redenção dos homens, a vida de Jesus Cristo, Deus e
homem, invadiu as sociedades e impregnou-as inteiramente com a sua fé, com as
suas máximas e as suas leis. É por isso que se a sociedade humana deve ser
curada, não o será senão pelo regresso à vida e às instituições do
cristianismo. A quem quer regenerar uma sociedade qualquer em decadência, se
prescreve com razão que a conduza às suas origens ( também Maquiavel, Discursi,
III, 1, afirma este princípio). Porque a perfeição de toda a sociedade consiste
em prosseguir e atingir o fim para o qual foi fundada, de modo que todos os
movimentos e todos os atos da vida social nasçam do mesmo princípio de onde
nasceu a sociedade. Por isso, afastar-se do fim é caminhar para a morte e
voltar a ele é readquirir a vida. E o que Nós dizemos de todo o corpo social
aplica-se igualmente a essa classes de cidadãos que vivem de seu trabalho e que
formam a grandíssima maioria.
Nem se pensa que a Igreja se deixa absorver de tal modo pelo cuidado das
almas, que põe de parte o que se relaciona com a vida terrena e mortal. Pelo
que em particular diz respeito à classe dos trabalhadores, ela faz todos os
esforços para arrancá-los à miséria e procurar-lhes uma sorte melhor. E,
certamente não é um fraco apoio que ele dá a esta obra só pelo fato de
trabalhar, por palavras e atos, para reconduzir os homens à virtude. Os
costumes cristãos, desde que entram em ação, exercem naturalmente sobre a
prosperidade temporal a sua parte de benéfica influência; porque eles atraem o
favor de Deus, princípio e fonte de todo o bem; comprimem o desejo excessivo
das riquezas e a sede dos prazeres, esses dois flagelos que frequentes vezes
lançam a amargura e o desgosto no seio da opulência (1 Tim 6, 10); contentam-se
enfim com uma vida e uma alimentação frugal, e suprem pela economia a
modicidade do rendimento, longe desses vícios que consomem não só as pequenas,
mas as grandes fortunas, e dissipam os maiores patrimônios.
A Igreja e a caridade durante os séculos
18. A Igreja, além disso, provê também diretamente à felicidade das
classes deserdadas, pela fundação e sustentação das instituições que ele julga
próprias para aliviar a sua miséria; e, mesmo neste gênero de benefícios, ela
tem sobressaído de tal modo, que os seus próprios inimigos lhe fizeram o seu
elogio. Assim entre os primeiros cristãos, era tal a virtude da caridade mútua,
que não raro viam-se os ricos despojarem-se de seu patrimônio em favor dos
pobres. Por isso a indigência não era conhecida entre eles (At 4, 34); os
Apóstolos tinham confiado aos Diáconos, cuja ordem fora especialmente
instituída para esse fim, a distribuição cotidiana das esmolas, e o próprio São
Paulo apesar de absorvido por uma solicitude que abraçava todas as Igrejas, não
hesitava em empreender penosas viagens para ir em pessoa levar socorros aos
cristãos indigentes. Socorros do mesmo gênero eram oferecidos espontaneamente
oferecidos pelos fiéis em cada uma das suas assembleias: o que Tertuliano chama
os "depósitos da piedade", porque eram empregados "em sustentar
e inumar as pessoas indigentes, os órfãos pobres de ambos os sexos, os domésticos
velhos, as vítimas de naufrágio" (Apol., II, 39).
Eis como pouco a pouco se formou esse patrimônio, que a Igreja sempre
guardou com religioso cuidado como um bem próprio da família dos pobres. Ela
chegou até a assegurar socorros aos infelizes, poupando-lhes a humilhação de
estender a mão; porque esta mãe comum dos ricos e dos pobres, aproveitando
maravilhosamente rasgos de caridade que ela havia provocado por toda a parte,
fundou sociedades religiosas e uma multidão de outras instituições úteis, que, pouco
tempo depois, não deviam deixar sem alívio nenhum gênero de miséria.
Há hoje, sem dúvida, certo número de homens que, fiéis ecos dos pagãos
de outrora, chegam a fazer, mesmo dessa caridade tão maravilhosa, uma arma para
atacar a Igreja; e viu-se uma beneficência estabelecida pelas leis civis
substituir-se à caridade cristã; mas esta caridade, que se dedica toda e sem
pensamento reservado à utilidade do próximo, não pode ser suprida por nenhuma
invenção humana. Só a Igreja possui essa virtude, porque não se pode haurir
senão no Sagrado Coração de Jesus Cristo, e é errar longe de Jesus Cristo estar
afastado da sua Igreja.
O concurso do Estado
19. Todavia não há dúvida de que, para obter o resultado desejado, não é
demais recorrer aos meios humanos. Assim, todos aqueles a quem a questão diz
respeito, devem visar ao mesmo fim e trabalhar de harmonia cada um na sua
esfera. Nisto há como uma imagem da Providência governando o mundo: porque nós
vemos de ordinário que os fatos e os acontecimentos que dependem de causas
diversas são a resultante da sua ação comum. Ora, que parte de ação e de
remédio temos nós o direito de esperar do Estado? Diremos primeiro, que por
Estado entendemos aqui, não tal governo estabelecido entre tal povo em
particular, mas todo governo que corresponde aos preceitos da razão natural e
dos ensinamentos divinos, ensinamentos que Nós mesmos expusemos, especialmente
na Nossa Carta Encíclica sobre a constituição cristã das sociedades (trata-se
da Encíclica Immortale Dei).
Origem da prosperidade nacional
20. O que se pede aos governantes é um curso de ordem geral, que
consiste em toda a economia das leis e das instituições; queremos dizer que
devem fazer de modo que da mesma organização e do governo da sociedade brote
espontaneamente e sem esforço a prosperidade, tanto pública como particular.
Tal é, com efeito, o ofício da prudência civil e dever próprio de todos aqueles
que governam. Ora, o que torna uma nação próspera, são os costumes puros, as
famílias fundadas sobre bases de ordem e de moralidade, a prática da religião e
o respeito da justiça, uma imposição moderada e uma repartição equitativa dos
encargos públicos, o progresso da indústria e do comércio, uma agricultura
florescente e outros elementos, se os há, do mesmo gênero; todas as coisas que
se não podem aperfeiçoar, sem fazer subir outro tanto a vida e a felicidade dos
cidadãos.
Assim como, pois, por todos esses meios, o Estado pode tornar-se útil às
outras classes, assim também pode melhorar muitíssimo a sorte da classes
operária, e isso em todo o rigor do seu direito, e sem ter a censura de
ingerência; porque em virtude mesmo de seu ofício, o Estado deve servir o
interesse comum. E é evidente que, quanto mais se multiplicarem as vantagens
resultantes desta ação de ordem geral, tanto menos necessidade haverá de
recorrer a outros expedientes para remediar a condição dos trabalhadores. Más
há outra consideração que atinge mais profundamente ainda o nosso assunto. A
razão formal de toda sociedade é uma e comum a todos os seus membros, grandes e
pequenos.
Os pobres, com o mesmo título que os ricos, são, por direito natural,
cidadãos; isto é, do número das partes vivas de que se compõe, por intermédio
das famílias, o corpo inteiro da nação, para não dizer que em todas as cidades
são o grande número. Como, pois, seria de razoável prover a uma classe de
cidadãos e negligenciar outra, torna-se evidente que a autoridade pública deve
também tornar as medidas necessárias para salvaguardar a salvação e os interesses
da classe operária. Se ela faltar a isto, viola a estrita justiça que quer que
seja dado a cada um seja dado o que lhe é devido. A esse respeito Santo Tomás
de Aquino diz muito sabiamente: "Assim como a parte e o todo são em certo
modo uma mesma coisa, assim o que pertence ao todo pertence de alguma sorte a
cada parte" (Santo Tomás Sum. Teo., II – II, q. 61 a. 1 ad 2). É por isso
que entre os graves e numerosos deveres dos governantes que querem prover, como
convém, ao público, o principal dever, que domina todos os outros, consiste em
cuidar igualmente de todas as classes de cidadãos, observando rigorosamente as
leis da justiça, chamada distributiva.
Mas, ainda que todos os cidadãos, sem exceção, devam contribuir para a
massa dos bens comuns, os quais, aliás, por um giro natural, se repartem de
novo entre os indivíduos, todavia, as constituições respectivas não podem ser
nem as mesmas, nem de igual medida. Quaisquer que sejam as vicissitudes pelas
quais as formas do governo são chamadas as passar, haverá sempre entre os
cidadãos essas desigualdades de condições, sem as quais uma sociedade não pode
existir nem conceber-se.
Sem dúvida são necessários homens que governem, que façam as leis, que
administrem justiça, que, enfim, por seus conselhos ou por via da autoridade,
administrem os negócios da paz, e as coisas da guerra. Que estes homens devem
ter a preeminência em toda a sociedade e ocupar nela o primeiro lugar, ninguém
o pode duvidar, pois eles trabalham diretamente para o bem comum e duma maneira
tão excelente. Os homens que, pelo contrário, se aplicam às coisas da
indústria, não podem concorrer para este bem comum nem na mesma medida, nem
pelas mesmas vias; mas, entretanto, também eles, ainda que de maneira menos
direta, servem muitíssimo os interesses da sociedade.
Sem dúvida alguma, o bem comum, cuja aquisição deve Ter por efeito
aperfeiçoar os homens, é principalmente um bem moral. Mas numa sociedade
regularmente constituída deve encontrar-se ainda certa abundância de bens
exteriores "cujo uso é reclamado para o exercício da virtude" ( Santo
Tomas, De regimine princ. I, 15). Ora, a fonte fecunda e necessária de todos
estes bens é principalmente o trabalho do operário, o trabalho dos campos ou da
oficina. Mais ainda, nesta ordem de coisas, o trabalho tem uma tal fecundidade
e tal eficácia que se pode afirmar, sem receio de engano, que ele é a fonte
única de onde procede a riqueza das nações. A equidade manda, pois, que o
Estado se preocupe com os trabalhadores, e proceda de modo que, de todos os
bens que eles proporcionam à sociedade, lhe seja dada uma parte razoável, como
habitação e vestuário, e que possam viver à custa de menos trabalho e privações
(veja-se o no . 12 desta encíclica: Posse e uso das riquezas).
De onde resulta que o Estado deve favorecer tudo o que, de perto ou de
longe, pareça de natureza a melhorar-lhes a sorte. Esta solicitude, longe de
prejudicar alguém, tornar-se-á, ao contrário, proveito de todos, porque importa
soberanamente à nação que homens, que são para ela o princípio de bens tão
indispensáveis, não se encontrem continuamente a braços com os horrores da
miséria.
O governo é para os governados e não vice-versa
21. Dissemos que não é justo que a família ou os indivíduos sejam
absorvidos pelo Estado, mas é justo, pelo contrário, que aquele e esta tenham a
faculdade de proceder com liberdade, contanto que não atentem contra o bem
geral e não prejudiquem ninguém. Entretanto, aos governantes, pertencem
proteger a comunidade e as suas partes: a comunidade, porque a natureza confiou
a sua conservação ao poder soberano, de modo que a salvação pública não é só aqui
a lei suprema, mas a causa mesma e a razão de ser do principado; as partes,
porque, de direito natural, o governo não deve visar Os aos interesses daqueles
que têm o poder nas mãos, mas ainda o bem dos que lhe estão submetidos. Tal é o
ensino da filosofia, não menos que da fé cristã. Por outra parte, a autoridade
vem de Deus e é uma participação da sua autoridade suprema; desde então,
aqueles que são os depositários dela devem exercê-la à imitação de Deus, cuja
paternal solicitude se não estende menos a cada uma das criaturas em particular
do que a todo o seu conjunto. Se, pois, os interesses gerais, ou o interesse de
uma classe em particular, se encontram ou lesados ou simplesmente ameaçados, e
se não for possível remediar ou obviar a isso de outro modo, é de toda a
necessidade recorrer à autoridade pública.
Obrigações e limites da intervenção de Estado
22. Ora, importa à salvação comum e particular que a ordem e a paz
reinem por toda a parte; que toda a economia da via doméstica seja regulada
segundo os mandamentos de Deus e os princípios da lei natural; que a religião
seja honrada e observada; que se vejam florescer os costumes públicos e
particulares; que a justiça seja religiosamente guardada, e que nunca uma
classe possa oprimir impunemente a outra; que crescem robustas gerações,
capazes de ser o sustentáculo, e, se necessário for, o baluarte da Pátria. É
por isso que os operários, abandonando o trabalho ou suspendendo-o por greves
ameaçam a tranquilidade pública; que os laços naturais da família afrouxam
entre os trabalhadores; que se calca aos pés a religião dos operários, não lhes
facilitando o comprimento dos deveres para com Deus; que a promiscuidade dos
sexos e outras excitações ao vício constituem nas oficinas um perigo para a
moralidade; que os patrões esmagam os trabalhadores sob o peso de ônus iníquos,
ou desonram neles a pessoa humana por condições indignas e degradantes; que
atentam contra a sua saúde por um trabalho excessivo e desproporcionado com a
sua idade e sexo: com todos esses casos é absolutamente necessário aplicar em
certos limites a força e a autoridade das leis. Estes limites serão pelo mesmo
fim que reclama o socorro das leis, isto é, que eles não devem avançar nem
empreender nada além do que for necessário para reprimir os abusos e afastar os
perigos.
Os direitos em que eles se encontram, devem ser religiosamente
respeitados e o Estado deve assegurá-los a todos os cidadãos, prevenindo ou
vingando a sua violação. Todavia, na proteção dos direitos particulares, deve
preocupar-se, de maneira especial, dos fracos e dos indigentes. A classe rica
faz da sua riqueza uma espécie de baluarte e tem menos necessidade da tutela
pública. A classe indigente, ao contrário, sem riquezas que a ponham a coberto
das injustiças, conta principalmente com a proteção do Estado. Que o Estado se
faça, pois, sob um particularíssimo título, a providência dos trabalhadores,
que em geral pertencem à classe pobre (veja o nº e segs. desta encíclica).
O Estado deve proteger a propriedade particular
23. Mas, é conveniente descer expressamente a algumas particularidades.
É dever principalíssimo dos governos o assegurar a propriedade particular por
meio de leis sábias. Hoje especialmente, no meio de tamanho ardor de cobiças
desenfreadas, é preciso que o povo se conserve no seu dever; porque, se a
justiça lhe concede a o direito de empregar os meios de melhorar a sua sorte,
nem a justiça nem o bem público consentem que danifiquem alguém na sua fazenda
nem que se invadam os direitos alheios sob pretexto de não sei que igualdade.
Por certo que a máxima parte dos operários quereria melhorar de condição por
meios honestos sem prejudicar a ninguém; todavia, não poucos há que, embebidos
de máximas falsas e desejosos de novidade, procuram a todo o custo excitar e
impelir os outros a violências. Intervenha, portanto, a autoridade do Estado,
e, reprimindo os agitadores, preserve os bons operários do perigo da sedução e
os legítimos patrões de serem despojados do que é seu.
Impeça as greves
24. O trabalho muito prolongado e pesado e uma retribuição mesquinha
dão, poucas vezes, aos operários, ocasião de greves. É preciso que o Estado
ponha cobro a esta desordem grave e frequente, porque estas greves causam dano
não só aos patrões e aos mesmos operários, mas também ao comércio e aos
interesses comuns; e em razão das violências e tumultos, a que de ordinário dão
ocasião, põem muitas vezes em risco a tranquilidade pública. O remédio,
portanto, nesta parte, mais eficaz e salutar é prevenir o mal com a autoridade
das leis, e impedir a explosão, removendo a tempo as causas de que se prevê que
hão de nascer os conflitos entre os operários e patrões.
Proteja os bens da alma
25. Muitas outras coisas deve igualmente o Estado proteger ao operário,
e em primeiro lugar os bens da alma. A vida temporal, posto que boa e
desejável, não é o fim para que fomos criados; mas é a via e o meio para aperfeiçoar,
com o conhecimento da verdade e com a prática do bem, a vida do espírito. O
espírito é o que tem em si impressa a semelhança divina, e no qual reside
aquele principado em virtude do qual foi dado ao homem o direito de dominar as
criaturas inferiores e de fazer servir à sua utilidade toda a terra e todo o
mar: "Enchei a terra e tornai-vo-la sujeita, dominai sobre os peixes do
mar e sobre as aves do céu e sobre todos os animais que se movem sobre a
terra" (Gên 1, 28). Nisto todos os homens são iguais, e não há diferença
alguma entre ricos e pobres, patrões e criados, monarcas e súditos,
"porque é o mesmo o Senhor de todos" (Rom 10, 12). A ninguém é lícito
violar impunemente a dignidade do homem, do qual Deus mesmo dispõe com grande
reverência, nem pôr lhe impedimentos, para que ele siga o caminha daquele
aperfeiçoamento que é ordenado para o conseguimento da vida eterna; pois, nem
ainda por eleição livre, o homem pode renunciar a ser tratado segundo a sua
natureza e aceitar a escravidão do espírito; porque não se trata de direitos
cujo exercício seja livre, mas de deveres para com Deus que são absolutamente
invioláveis.
26. Daqui vem, como consequência, a necessidade do repouso festivo.
Isto, porém, não quer dizer que se deve estar em ócio por mais largo espaço de
tempo, e muito menos significa uma inação total, como muitos desejam, e que é
fonte de vícios e ocasião de dissipação; mas um repouso consagrado à religião.
Unido à religião, o repouso tira o homem dos trabalhos e das ocupações da vida
ordinária para chamá-lo ao pensamento dos bens celestes e ao culto devido à
Majestade Divina. Eis aqui a principal natureza e fim do repouso festivo que
Deus, com lei especial, prescreveu ao homem no Antigo Testamento, dizendo-lhe:
"Recorda-te de santificar o sábado" (Ex 20, 8); e que ensinou com o
seu exemplo, quando no sétimo dia, depois de criado o homem, repousou: "Repousou
no dia sétimo de todas as suas obras que tinha feito" (Gên 2, 2).
Proteção do trabalho dos operários, das mulheres e das crianças
No que diz respeito aos bens naturais e exteriores, primeiro que tudo é
um dever da autoridade pública subtrair o pobre operário à desumanidade de
ávidos especuladores, que abusam sem nenhuma discrição, das pessoas como das
coisas. Não é justo nem humano exigir do homem tanto trabalho a ponto de fazer
pelo excesso de fadiga embrutecer o espírito e enfraquecer o corpo. A atividade
do homem, restrita como a sua natureza, tem limites que se não podem ultrapassar.
O exercício e o uso aperfeiçoam-na, mas é preciso de que quando em quando se
suspenda para dar lugar ao repouso. Não deve, portanto, o trabalho prolongar-se
por mais tempo do que o as forças permitem. Assim, o número de horas do
trabalho diário não deve exceder a força dos trabalhadores, e a quantidade do
repouso deve ser proporcionada à qualidade do trabalho, às circunstâncias do
tempo e do lugar, à compleição e saúde dos operários. O trabalho, por exemplo,
de extrair pedra, ferro, chumbo, e outros materiais escondidos, debaixo da
terra, sendo mais pesado e nocivo à saúde devem ser compensados, com uma
duração mais curta. Deve-se também às estações, porque não poucas vezes um
trabalho, que facilmente se suportaria numa estação, noutra é de fato
insuportável ou somente se vence com dificuldade.
28. Enfim, o que um homem válido e na força da idade pode fazer, não
será equitativo exigi-lo duma mulher ou duma criança. Especialmente a infância,
- e isto deve ser estritamente observado, - não deve entrar na oficina senão
quando a sua idade tenha suficientemente desenvolvido nela as forças físicas,
intelectuais e morais; do contrário, como uma planta ainda tenra, ver-se-á
murchar com demasiado precoce, e dar-se-á cabo da sua educação. Trabalhos há
também que não se adaptam tanto ã mulher, a qual a natureza destina de
preferência aos arranjos domésticos, que, por outro lado salvaguardam
admiravelmente a honestidade do sexo, e correspondem melhor, pela sua natureza,
ao que pede a boa educação dos filhos e a prosperidade da família. Em geral, a
duração do descanso deve medir-se pelo dispêndio das forças que ele deve
restituir. O direito ao descanso de cada dia assim como à cessação do trabalho
no dia do Senhor, deve ser a condição expressa ou tácita de todo contrato feito
entre patrões e operários. Onde esta condição não entrar, o contrato não será
probo, pois ninguém pode exigir ou prometer a violação dos deveres do homem
para com Deus e para consigo mesmo.
O quantitativo dos salários dos operários
29. Passemos agora a outro ponta da questão e de não menor importância,
que, para evitar os extremos, demanda uma definição precisa. Referimo-nos à
fixação do salário. Uma vez livremente aceiro o salário por uma e outra parte,
assim se raciocina, o patrão cumpre todos os seus compromissos desde que o
pague e não é obrigado a mais nada. Em tal hipótese, a justiça só será lesada,
se ele se recusasse a saldar a dívida ou o operário a concluir todo o seu
trabalho, e a satisfazer as suas condições; e neste caso, com exclusão de
qualquer outro, é que o poder público teria que intervir para fazer valer o
direito de qualquer deles.
Semelhante raciocínio não encontrará um juiz equitativo que consinta em
o abraçar sem reserva, pois não abrange todos os lados da questão e omite um,
deveras importante. Trabalhar é exercer a atividade com o fim de procurar o que
requerem as diversas necessidades do homem, mas principalmente a sustentação da
própria vida. "Comerás o teu pão com o suor do teu rosto" (Gên 3,19).
Eis a razão por que o trabalho recebeu da natureza como um duplo cunho: é
pessoal, porque a força ativa é inerente à pessoa, e porque é propriedade
daquele que a exerce e a recebeu para sua utilidade; e é necessário, porque o
homem precisa da sua existência, e porque a deve conservar para obedecer às
ordens irrevogáveis da natureza. Ora, se não se encarar o trabalho senão pelo
seu lado pessoal, não há dúvida de que o operário pode a seu talante restringir
a taxa do salário. A mesma vontade que dá o trabalho pode contentar-se com uma
pequena remuneração ou mesmo não exigir nenhuma. Mas já é outra coisa, se ao
caráter de personalidade se juntar o de necessidade, que o pensamento pode
abstrair, mas que na realidade não se pode separar. Efetivamente, conservar a
existência é um dever imposto a todos os homens e ao qual se não podem subtrair
sem crime. Deste dever nasce necessariamente o direito de procurar as coisas
necessárias à subsistência, e que o pobre as não procure senão mediante o
salário do seu trabalho.
Façam, pois, o patrão e o operário todas as convenções que lhes
aprouver, cheguem inclusive a acordar na cifra do salário; acima da sua livre
vontade está uma lei de justiça natural, mais elevada e mais antiga, a saber,
que o salário não deve ser insuficiente para assegurar a subsistência do
operário sóbrio e honrado. Mas se, constrangido pela necessidade ou forçado
pelo receio dum mal maior, aceita condições duras que por outro lado lhe não
seria permitido recusar, porque lhe são impostas pelo patrão ou por quem faz
oferta do trabalho, então é isto sofrer uma violência contra a qual a justiça
protesta.
Mas, sendo de temer que nestes casos e em outros análogos, como no que
diz respeito às horas diárias de trabalho e à saúde dos operários, a
intervenção dos poderes públicos seja importuna, sobretudo por causa da
variedade das circunstâncias, dos tempos e dos lugares, será preferível que a
solução seja confiada às corporações ou sindicatos de que falaremos mais
adiante ou que se recorra a outros meios de defender os interesses dos
operários, mesmo com o auxílio e apoio do Estado, se a questão reclamar
(veja-se o nº 29 e segs.).
A economia como meio de conciliação das classes
30. O operário que receber um salário suficiente para ocorrer como
desafogo às suas necessidades e as da sua família, se for avisado, seguirá o
conselho que parece dar-lhe a própria natureza: aplicar-se-á a ser parcimonioso
e obrará de forma que, com prudentes economias, vá juntando um pequeno pecúlio
que lhe permita chegar um dia a adquirir um modesto patrimônio. Já vimos que a
presente questão não podia receber solução realmente eficaz, se se não
começasse por estabelecer com o princípio fundamental a inviolabilidade da
propriedade particular. Importa pois que as leis favoreçam o espírito da
propriedade, o reanimem e desenvolvam, tanto quanto possível, entre as massas
populares.
Uma vez obtido este resultado, seria ele a fonte dos mais preciosos
benefícios, e em primeiro lugar duma repartição dos bens certamente mais equitativa.
A violência das revoluções políticas dividiu o corpo social em duas classes e
cavou entre um imenso abismo. Dum lado a onipotência na opulência: uma facção
que, senhora absoluta da indústria e do comércio, torce o curso das riquezas e
faz correr para o seu lado todos os mananciais; facção que aliás têm na sua mão
mais dum motor da administração pública. Do outro, a fraqueza na indigência:
uma multidão com a alma dilacerada, sempre pronta para a desordem. Ah,
estimula-se a industriosa atividade do povo com a perspectiva da sua
participação na propriedade do solo, e ver-se-á nivelar pouco a pouco o abismo
que separa a opulência da miséria, e operar-se a aproximação entre as duas
classes. Demais, a terra produzirá tudo em maior abundância, pois o homem é
assim feito: o pensamento de que trabalha em terreno que é seu redobra o seu
ardor e a sua aplicação. Chega a por todo o seu amor numa terra que ele mesmo
cultivou que lhe promete a si e aos seus não só o estritamente necessário, mas
ainda uma certa abastança. Não há quem descubra sem esforço essa duplicação da
atividade sobre a fecundidade sobre a terra e sobre a riqueza das nações. A
terceira atividade será a suspensão do movimento de emigração: ninguém, com
efeito, quereria trocar por uma região estrangeira a sua pátria e a sua terra
natal, se nesta encontrasse os meios de levar uma vida mais tolerável.
Mais uma condição indispensável para que todas estas vantagens se
convertam em realidades, é que a propriedade particular não seja esgotada por
um excesso de encargos e de impostos. Não é das leis humanas, mas da natureza,
que emana o direito da propriedade individual; a autoridade pública não o pode,
pois; abolir, o que ela pode é regular-lhe e conciliá-lo com o bem comum. É por
isso que ela obra contra a justiça e contra a humanidade quando, sobre o nome
de impostos, sobrecarrega desmedidamente os bens dos particulares.
Benefícios das corporações
31. Em último lugar, que os próprios patrões e operários podem
singularmente auxiliar a solução por meio de todas as obras próprias a aliviar
eficazmente a indigência e a operar uma aproximação entre as duas classes.
Deste número são as associações de socorres mútuo; as diversas instituições,
devido à iniciativa particular, que tem por fim socorrer os operários, bem como
as suas viúvas e órfãos, em caso de morte, de acidentes ou de enfermidades; os
patronatos que exercem uma proteção benéfica para com as crianças dos dois
sexos, os adolescentes e os homens feitos. Mas o primeiro lugar pertence às
corporações operárias, que abrangem quase todas as outras. Os nossos
antepassados experimentaram por muito tempo a benéfica influência destas
associações. Ao mesmo tempo em que os artistas encontravam nelas apreciáveis
vantagens, as artes receberam delas novo lustre e nova vida, como o proclama
grande quantidades de monumentos. Sendo hoje mais cultas as gerações, mais
polidos os costumes, mais numerosas as exigências da vida cotidiana, e fora de
dúvida que se não podia deixar de adaptar as associações às essas novas
condições. Assim, com prazer vemos Nós irem-se formando por toda parte
sociedades deste gênero, quer compostas só de operários, quer mistas, reunindo
ao mesmo tempo operários e patrões: é para desejar que aumentem a sua ação.
Conquanto nos tenhamos ocupado delas mais uma vez (veja-se a Encíclica
Libertas), queremos expor aqui a sua oportunidade e o seu direito de existência
e indicar como devem organizar-se e qual deve ser o seu programa de ação.
As associações particulares e o Estado
32. A experiência que os homens adquirem todos os dias da exiguidade de
suas forças, obriga-o e impele-o a agregar-se a uma cooperação estranha.
São nas Sagradas Letras que se lê esta máxima: "Mais valem dois
juntos que um só, pois tiram vantagens da suas associação. Se um cai, o outro
sustenta-o Desgraçado do homem só, pois quando cair, não terá ninguém que o
levante"(Ecl 4, 9-12). E esta outra: "O irmão que é ajudado por seu
irmão, é como uma cidade forte"(Prov 18, 19). Desta propensão natural,
como dum único germe nasce primeiro a sociedade civil; depois no próprio seio
desta, outras sociedades que, por serem restritas e imperfeitas, não deixam de
ser sociedades verdadeiras.
Entre as pequenas sociedades e a grande, existem profundas diferenças,
que resultam de seu fim próximo. O fim da sociedade civil abrange
universalmente todos os cidadãos, pois este fim está no bem comum, isto é, num
bem do qual todos e cada um têm o direito de participar em medida proporcional.
Por isso se chama público, porque "reúne os homens para formarem uma nação"
(Santo Tomás, Contra Impug. Dei cultum et relig., II, 8). Ao contrário, as
sociedades que se constituem no seu seio, são frágeis, porque são particulares,
e o são, com efeito, pois a sua razão de ser imediata, é a utilidade particular
e exclusiva dos seus membros: "A sociedade particular é aquela que se
forma com um fim particular, como quando dois ou três indivíduos para exercerem
em comum o comércio" (Ibidem). Ora pelo fato de as sociedades particulares
não terem existência senão no seio da sociedade civil, da qual são como outras
tantas partes, não se segue, falando em geral e considerando apenas a sua
natureza, que o Estado possa negar-lhe a existência. O direito de existência
foi-lhes outorgado pela própria natureza; e a sociedade civil foi instituída
para proteger o direito natural, não para aniquilá-lo. Por esta razão, uma
sociedade civil que proibisse as sociedades públicas e particulares,
atacar-se-ia a si mesa, pois todas as sociedades públicas e particulares tiram
a sua origem dum mesmo princípio: a natural sociabilidade do homem. Certamente
se dão conjunturas que as leis a opor-se à fundação duma sociedade deste
gênero. Se uma sociedade, em virtude mesmo de seus estatutos orgânicos,
trabalhasse para um fim em oposição flagrante com a probidade, com a justiça,
com a segurança do Estado, os poderes públicos teriam o direto de lhe impedir a
formação, ou de dissolvê-la, se já estivesse formada. Mas devia em tudo isso
proceder com grande circunspecção para evitar a usurpação dos direitos dos
cidadãos, e para não estatuir, sobre a cor de utilidade pública, alguma coisa
que a razão houvesse de desaprovar. Pois uma lei não merece obediência senão
enquanto é conforme com a reta razão e a leia eterna de Deus (Santo Tomás, Sum.
Teo., I-II, q. 93, a. 3 ad 2).
33. Aqui, apresentam-se ao nosso espírito as confrarias, as congregações
e as ordens religiosas de todo o gênero, nascidas da autoridade da Igreja e da
piedade dos fiéis. Quais foram os seus frutos de salvação para o gênero humano
até aos nossos dias, a história o diz suficientemente. Considerando
simplesmente o ponto de vista da razão, estas sociedades aparecem como fundadas
com um fim honesto, e, consequentemente, sob os auspícios do direito natural:
no que elas têm de relativo à religião, não dependem senão da Igreja. Os
poderes públicos não podem, pois, legitimamente, arrogar-se nenhum direto sobre
elas, atribuir-se a sua administração, a sua obrigação é antes respeitá-las,
protegê-las, e em caso de necessidade, defendê-las. Justamente o contrário é que
Nós temos sido condenados a ver, principalmente nesses últimos tempos. Em não
poucos países, o Estado tem posto mão nestas sociedades, e tem acumulado a este
respeito injustiça: sujeição às leis civis, privação do direito legítimo de
personalidade, espoliação dos bens. Sobre estes bens, a Igreja tinha, todavia
os seus direitos: cada um dos membros tinha os seus; os doadores que lhe haviam
dado uma aplicação, e aqueles, enfim, que delas auferiam socorros e alívio,
tinham os seus. Assim não podemos deixar de deplorar amargamente espoliações
tão iníquas e tão funestas; tanto mais que se ter de proscrição as sociedades
católicas na mesma ocasião em que se afirma a legalidade das sociedades
particulares, e que aquilo que se recusa a homens pacíficos e que não tem em
vista senão a utilidade pública se concede, e por certo muito amplamente, a
homens que meditam planos funestos para a religião e também para o Estado.
As associações operárias católicas
34. Certamente em nenhuma outra época se viu tão grande multiplicidade
de associações de todo o gênero, principalmente de associações operárias. Não
é, porém, lugar para se investigar qual a origem de muitas delas, qual o fim e
quais os meios que tendem para esse fim. Mas é uma opinião, confirmada por
numerosos indícios, que elas são ordinariamente governadas por chefes ocultos,
e que obedecem a uma palavra de ordem igualmente hostil ao nome cristão e à
segurança das nações; que, depois de terem açambarcado todas as empresas, se há
operários que recusam a entrar no seu seio, ela fazem-lhe expiar a sua recusa
pela miséria. Nesse estado de coisas, os operários cristãos não têm remédio
senão escolher entre esses dois partidos: ou darem os seus nomes de que a
religião tem tudo a temer, ou organizarem-se eles próprios e unirem as forças
para poderem sacudir denodadamente um jugo tão injusto e tão intolerável.
Haverá homens verdadeiramente empenhados em arrancar o supremo bem da
humanidade a um perigo iminente, que possam ter a menor dúvida de que é
necessário obter por esse último partido?
É altamente louvável o zelo de grande número dos nossos que, conhecendo
perfeitamente as necessidades da hora presente, sondam cuidadosamente o
terreno, para aí descobrirem uma vereda honesta que conduz à reabilitação da
classe operária. Constituindo-se protetores das pessoas dedicadas ao trabalho,
esforcem-se por aumentar a sua prosperidade, tanto doméstica quanto individual,
e regular com equidade as relações recíprocas dos patrões e dos operários; por
manter e enraizar nuns e noutros a lembrança dos seus deveres e a observação
dos preceitos que, conduzindo o homem à moderação e condenando todos os
excessos, mantém nas nações, e entre elementos tão diversos de pessoas e de
coisas, a concórdia e a harmonia mais perfeita. Sob a inspiração dos mesmos
pensamentos, homens de grande mérito se reúnem frequentemente em congresso,
para comunicarem mutualmente as ideias, unirem as suas forças, ordenarem
programas de ação. Outros se ocupam de formar corporações adequadas às diversas
profissões e em fazer entrar nelas os artífices; coadjuvam estes com os seus
conselhos, e a sua fortuna, e providenciam para que lhes não falte nunca um
trabalho honrado e proveitoso. Os Bispos, por seu lado, animam estes esforços e
os colocam sob a sua proteção; por sua autoridade e sob seus auspícios, membros
do clero, tanto secular como regular, se dedicam, em grande número, aos
interesses espirituais das corporações. Finalmente, não faltam católicos que,
possuidores de abundantes riquezas, convertidos de algumas sortes em
companheiros voluntários dos trabalhadores, não olham as despesas para fundar e
propagar sociedades, onde estes possam encontrar a par com certa abastança para
o presente, a promessa de honroso descanso para o futuro. Tanto zelo, tantos e
tão engenhosos esforços têm já feito entre os povos um bem muito considerável,
e demasiado conhecido para que seja necessário falar deles mais detidamente. É
a nossos olhos feliz prognóstico para o futuro, e esperamos destas corporações
os mais benéficos frutos, contanto que continuem a desenvolver-se e que a
prudência presida à sua organização. Proteja o Estado essas estas sociedades
fundadas segundo o direito; mas não se intrometa no seu governo interior e não
toque nas molas íntimas que lhes dão vida; pois o movimento vital procede
essencialmente de um princípio interno, e extingue-se facilmente sob a ação de
uma causa externa.
Disciplina e fim destas associações
35. Precisam evidentemente estas corporações, para que nelas haja
unidade de ação e acordo de vontades, duma sábia e prudente disciplina. Se,
pois, como é certo, os cidadãos são livre para se associarem, devem sê-lo
igualmente para se dotarem com os estatutos e regulamentos que lhe pareçam mais
apropriados ao fim a que visam. Quais devem ser estes estatutos e regulamentos?
Não cremos que se possam dar regras certas e precisas para lhes determinar os
pormenores; tudo depende do gênero de cada nação, das tentativas feitas e da
experiência adquirida, do gênero de trabalho, da expansão do comércio, e de
outras circunstâncias de coisas e de tempos que se devem pesar com ponderação.
Tudo quanto se pode dizer em geral é que se deve tomar como regra universal e
constante o organizar e governar por tal forma as corporações que proporcionem
a cada um dos seus membros os meios mais aptos para lhe fazerem atingir, pelo
caminho mais cômodo e mais curto, o fim que eles se propõem, e que consiste no
maior aumento possível dos bens do corpo, do espírito e da fortuna.
Mas é evidente que se deve visar antes de tudo ao objeto principal, que
é o aperfeiçoamento moral e religioso. É principalmente este fim que deve
regular toda a economia destas sociedades; de outro modo, elas degenerariam bem
depressa e cairiam, por pouco que fosse na linha das sociedades em que não tem
lugar a religião. Ora, de que serviria ao artista ter encontrado no seio da
corporação a abundância material, se a falta de alimentos espirituais pusesse
em perigo a salvação de sua alma? "Que vale ao homem possuir o universo
inteiro, se vier a perder a sua alma?"(Mt 16, 26). Eis o caráter com que
Nosso Senhor Jesus Cristo quis com que se distinguisse o cristão do pagão:
"Os pagãos procuram todas estas coisas... procurai primeiro o Reino de
Deus, e todas estas coisas vos serão dadas por acréscimo" (Mt 6, 32-33).
Assim, pois, tomando Deus como ponto de partida, dê-se amplo lugar à instrução
religiosa a fim de que todos conheçam os seus deveres para com ele; o que é necessário
crer, o que é necessário esperar, o que é necessário fazer para obter a
salvação eterna, tudo isso lhes deve ser cuidadosamente recomendado;
premunam-se com particular solicitude contra as opiniões errôneas contra todas
as variedades do vício. Guie-se o operário ao culto de Deus, incite-se nele o
espírito de piedade, faça-se principalmente fiel à observância dos domingos e
dias festivos. Aprenda ela a amar e respeitar a Igreja, mão comum de todos os
cristãos, a aquiescer aos seus preceitos, a frequentar os seus sacramentos, que
são fontes de vida onde a alma se purifica das manchas e bebe a santidade.
Constituída assim a religião fundamento de todas as leis sociais, não é
difícil determinar as relações mútuas a estabelecer entre os membros para obter
a paz e a prosperidade da sociedade. As diversas funções devem ser distribuídas
da maneira mais proveitosa aos interesses comuns, e de tal modo, que a
desigualdade não prejudique a concórdia. Importa grandemente que os encargos
sejam distribuídos com inteligência e claramente definidos, a fim de que
ninguém sofra injustiça. Que a massa comum seja administrada com integridade, e
que se determine previamente, pelo grau de indigência de cada um dos membros, a
quantidade de socorro que deve ser concedido; que os direitos e os deveres dos
patrões seja perfeitamente conciliados com os direitos e deveres dos operários.
A fim de se atender às reclamações eventuais que se levantem numa ou noutra
classe a respeito dos direitos lesados, seria muito para desejar que os
próprios estatutos encarreguem homens prudentes e íntegros, tirados do seu
seio, para regularem o litígio na qualidade de árbitros.
Convite para os operários católicos se associarem
36. É necessário ainda prover de modo especial a que em nenhum tempo
falte trabalho ao operário; e que haja um fundo de reserva destinado a fazer face,
não somente aos acidentes súbitos e fortuitos inseparáveis do trabalho
industrial, mas ainda à doença, à velhice e aos reveses da fortuna.
Estas leis, contando que sejam aceitas de boa vontade, bastam para
assegurar aos fracos a subsistência e certo bem-estar; mas as corporações
católicas ainda são chamadas a prestar os seus bons serviços à prosperidade
geral. Pelo passado podemos sem temeridade julgar o futuro. Uma época cede o
lugar à outra. Mas o curso das coisas apresentam maravilhosas semelhanças,
preparadas por essa Providência que tudo dirige e faz convergir para o fim que
Deus se propôs ao criar a humanidade. Sabemos que nas primeiras idades da
Igreja lhe imputavam como crime a indigência dos seus membros, condenado a
viver de esmolas ou do trabalho. Mas despidos como estavam de riquezas e de
poder, souberam conciliar o favor dos ricos e a proteção dos poderosos.
Viam-nos diligentes e laboriosos, modelos de justiça e principalmente de
caridade. Com o espetáculo de uma vida tão perfeita e de costumes tão puros,
todos os preconceitos se dissiparam, o sarcasmo caiu e as ficções de uma
superstição inveterada desvaneceram-se pouco a pouco ante a verdade cristã.
A sorte da classe operária, tal é a questão de que hoje se trata, será
resolvida pela razão ou sem ela e não pode ser indiferente às nações quer o
seja de um modo ou de outro. Os operários cristãos resolvê-la-ão facilmente
pela razão, se, unidos em sociedades e obedecendo a uma direção prudente,
encontrarem no caminho em que seus antepassados encontraram o seu bem e o dos
povos. Qualquer que seja nos homens a força dos preconceitos e das paixões, se
uma vontade pervertida não afogou ainda inteiramente o sentido do justo e do
honesto, será indispensável que, cedo ou tarde, a benevolência pública se volte
para esses operários, que se hajam visto ativos e modestos, pondo a equidade
acima da ganância, e preferindo a tudo a religião do dever. Daqui, resultará
esta outra vantagem: que a esperança de salvação e grandes facilidades para atingi-la,
serão oferecidas a esses operários que vivem no desprezo da fé cristã ou nos
hábitos que ela reprova. Compreendem, geralmente, esses operários que tem sido
joguete de esperanças enganosas e de aparências mentirosas. Pois sentem, pelo
tratamento desumano que recebem dos seus patrões, que quase não são avaliados
senão pelo peso do ouro produzido pelo seu trabalho; quanto às sociedades que
os aliciaram; bem veem eles que, em lugar da caridade e do amor, não encontram
nelas senão discórdias intestinas, companheiras inseparáveis da pobreza
insolente e incrédula. A alma embotada, o corpo extenuado, quanto não
desejariam sacudir um jugo tão humilhante! Mas, ou por causa dos respeitos
humanos, ou pelo receio da indigência, não ousam fazê-lo. Ah, para todos esses
operários podem as sociedades católicas ser de maravilhosa utilidade, se
convidarem os hesitantes a vir procurar no seu seio um remédio para todos os
males, e acolherem pressurosas os arrependidos e lhes assegurarem defesa e
proteção.
Solução definitiva: a caridade
Vede Veneráveis Irmãos, por quem e por que meios esta questão tão
difícil demanda ser tratada e resolvida. Tome cada um a tarefa que lhe
pertence, e isto sem demora, para que não suceda que, diferindo o remédio, se
torne incurável o mal, já de si tão grave. Façam os governantes usos da
autoridade protetora das leis e das instituições; lembrem-se os ricos e os
patrões dos seus deveres; tratem os operários, cuja sorte está em jogo, dos
seus interesses pelas vias legítimas; e, visto que só a religião, como dissemos
a princípio, é capaz de arrancar o mal pela raiz, lembrem-se todos que a
primeira coisa a fazer é a restauração dos costumes cristãos, sem os quais os
meios mais eficazes sugeridos pela prudência humana serão pouco aptos para
produzir salutares resultados. Quanto à Igreja, a sua ação jamais faltara por
qualquer modo, e será tanto mais fecunda, quanto mais livremente se possa
resolver. Nós desejamos que compreendam isto, sobretudo aqueles cuja missão é
velar pelo bem público. Empreguem neste ponto todos os Ministros do Santuário
toda a energia da sua alma e generosidade do seu zelo, e guiados pela vossa
autoridade e pelo vosso exemplo, Veneráveis Irmãos, não se cansem de inculcar a
todas as classes da sociedade as máximas do Evangelho; façamos tudo quanto
estiver ao nosso alcance para salvação dos povos, e, sobretudo, alimentem em si
e acendam nos outros, nos grandes e nos pequenos a caridade, senhora e rainha
de todas as virtudes. Portanto, a salvação desejada deve ser principalmente o
fruto de uma grande efusão da caridade, queremos dizer, daquela caridade que
compendia em si todo o Evangelho, e que, sempre pronta a sacrificar-se pelo
próximo, é o antídoto mais seguro contra o orgulho e o egoísmo do século. Desta
virtude, descreveu São Paulo as feições características com as seguintes
palavras: "A caridade é paciente, é benigna, não cuida do seu interesse;
tudo sofre; a tudo se resigna" (1Cor 13, 4-7).
Como sinal dos favores celestes e penhor de Nossa benevolência, a cada
um de vós, Veneráveis Irmãos, ao vosso clero e ao vosso povo, com grande afeto
no Senhor, concederam a Benção Apostólica.
Dado em Roma, junto de São Pedro, aos 15 de maio de 1891, no décimo
quarto ano de Nosso Pontificado.
LEÃO PP. XIII
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