Resenha:
Revolta das Massas
A Fábrica de Robôs (R.U.R. Rossumoví univerzální roboti), de
Karel Tchápek. São Paulo: Hedra, 2010, 148 páginas. Tradução de Vera Machac.
Introdução de Aleksandar Jovanovic. ISBN 978-85-7715-161-5
Com a
publicação deste livro, a editora Hedra corrigiu uma falta grave do meio
editorial brasileiro: tornou finalmente disponível uma edição local da famosa
peça teatral R.U.R., do escritor tcheco Karel Tchápek (1890-1938), e a partir
da qual a palavra "robô" entrou em várias línguas do mundo. O irmão
de Karel, Josef (que morreria mais tarde num campo de concentração alemão), a
sugeriu a ele a partir da palavra tcheca robota, que
significaria "trabalhador servo". A peça, escrita em 1920, é um dos
marcos da ficção científica do início do século 20, e havia sido publicada em
português apenas em Portugal, na antologia Os Melhores Contos de FC de
Júlio Verne aos Astronautas, organizada por Lima de Freitas para a
Coleção Argonauta.
Fisicamente
a edição da Hedra é simpática e apresenta um design sofisticado. Mais importante, porém, é
a introdução de Jovanovic, provavelmente o melhor esboço biográfico de Tchápek
já publicado no Brasil, com uma contextualização muito boa do tempo e do lugar
da sua produção. Ficamos sabendo, por exemplo, que foi graças ao famoso
dramaturgo inglês George Bernard Shaw, que R.U.R - ou A Fábrica de Robôs,
como os editores da Hedra preferiram chamar - obteve a sua repercussão positiva
entre os intelectuais europeus. Jovanovic também nos informa do interesse de
Tchápek pela escola pragmática da filosofia americana. Assim como o inglês Olaf
Stapledon (1886-1950), Tchápek tinha formação em filosofia, o que transparece
em seus textos.
A peça
foi escrita em 1920, e marca a fase em que, com Tchápek longe do trabalho
jornalístico, a atividade intelectual e literária do autor cresce, ganhando
inclusive penetração internacional, quando A Fábrica dos Robôs foi traduzida para o inglês em 1923.
Dividida
em três atos, abre com Domin, um executivo da empresa Robôs Universais Rossum,
recebendo a visita da filha do seu presidente: Helena Glory é o motor da peça,
a personagem que coloca as coisas em andamento, embora, é claro, a fábrica e a
sua revolução tecnológica já estejam estabelecidas, quando ela faz a sua
entrada. Os robôs - seres artificiais biológicos, e portanto mais próximos
daquilo que a ficção científica consagrou como androides -
são força barata de trabalho que, de acordo com seus criadores, deverão
realizar o sonho da ciência e da tecnologia, de liberar o ser humano para
atividades mais enobrecedoras: "Tudo será feito pelas máquinas
vivas", diz Domin. "As pessoas vão fazer apenas o que gostam. Vão
viver apenas para se aperfeiçoar".
Helena representa a Liga Humanitária, e seu
propósito é o de exigir dos homens da R.U.R. a libertação dos robôs e a sua
efetiva humanização. Enxerga os robôs como vítimas da exploração do trabalho, e
é fácil ver nela a censura da desumanização que a ordem capitalista forçaria
sobre o proletariado. Mais que isso, sua postura é moralizante - ela quer que
as máquinas vivas, engendradas apenas para o trabalho, tenham direito ao
sentimento e ao amor. Suas idéias são ridicularizadas pelos dirigentes da
empresa, que enxergam nos andróides seres sem vontade própria e sem ambições -
a visão comum dos aristocratas sobre o proletariado. Ela acaba mesmo é se
casando com Domin.
A mulher
militante, moralizadora e sufragista talvez fosse um leitmotif da
época. Certamente reapareceria mais tarde no teatro, por exemplo em A Santa Joana dos Matadouros (1929-1931),
de Bertold Brecht (1898-1956), peça clássica sobre a crise do capitalismo
(segundo Roberto Schwarz), escrita durante a Grande Depressão.
No segundo ato, Helena ressurge dez anos
depois, rodeada por Domin e seus associados, todos enamorados dela e cercando-a
de mimos. Eles tentam esconder dela o fato de que os robôs estão rebelados. Um
dos diretores, Gall, o chefe da seção experimental da R.U.R., sensibilizara-se
com as idéias da moça e inserira modificações na produção dos androides,
tornando-os mais aptos para a dor e os sentimentos. Como resultado indireto,
passados dez anos os andróides estão prontos para a revolta e a tomada do
poder, numa espécie de conflito aberto de classes. Domin e os outros se
preparam para a fuga, em um navio armado.
Helena, porém, continua funcionando como a
principal modificadora da ação. No segundo ato, por conta de uma espécie de
"objeto mágico" que Tchápek isolou como chave para o futuro da
revolta, ela volta a ser determinante. O "objeto" em questão são os
manuscritos originais do "velho Rossum", o inventor do processo
criador dos andróides. Em jogo está a "reprodução" desses seres
artificiais. Em paralelo, outro problema demográfico se apresenta: sem
precisarem mais trabalhar, as pessoas param de ter filhos.
É como se
Tchápek tivesse intuído que a exploração internacional do trabalho, a revolta
das massas e os movimentos revolucionários, e a guerra e o choque das nações (a
certa altura, os andróides são transformados de força de trabalho em exércitos)
na intensidade vista nos séculos 19 e 20, seriam resultado da superpopulação.
Uma hipótese que ele também explora no seu famoso romance de 1936, A Guerra das Salamandras, republicado no Brasil agora
em 2011, pela Editora Record. O acadêmico inglês John Carey já havia notado, no
livro Os Intelectuais e as Massas (1992), que muito do "temor das
massas" sentido pelos intelectuais europeus tinha por trás o fenômeno da
explosão demográfica. As utopias modernas, do capitalismo internacional do
livre mercado ao comunismo, seriam respostas à superpopulação. Na visão de
Tchápek, tendo crescido na exploração o que os andróides desejam não é a
liberdade, mas a inversão dos papéis, numa possível ditadura do proletariado:
"Quero ser o dono dos outros", diz o androide Radius, que sabe que
seus irmãos têm as vantagens dos números e da eficiência, sobre os humanos.
Deve ter
sido interessante ver A Fábrica dos Robôs no palco. A peça combina momentos
exaltados com momentos sombrios, comédia e tragédia. Destituída de qualquer
aspecto pretensioso, abraça entusiasticamente o excesso burlesco e a alegoria
política.
Sua leitura sugere velocidade e agitação,
embora as cenas de revolta dos andróides sejam apenas narradas pelos
personagens, que as testemunham pelas janelas da casa de Helena e Domin. Em
tudo, a peça de Tchápek dramatiza um destino apocalíptico para as atitudes
humanas em torno da ciência e tecnologia, do trabalho e do consumo, que ainda
calam no leitor de hoje, quase cem anos depois de escrita. Foi encenada pela
primeira vez no Brasil em 2010, com direção de Leonel Moura.
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