domingo, 19 de fevereiro de 2012

REVOLTA DAS MASSAS - VOCÊ CONHECE?


Resenha: Revolta das Massas


A Fábrica de Robôs (R.U.R. Rossumoví univerzální roboti), de Karel Tchápek. São Paulo: Hedra, 2010, 148 páginas. Tradução de Vera Machac. Introdução de Aleksandar Jovanovic. ISBN 978-85-7715-161-5

Com a publicação deste livro, a editora Hedra corrigiu uma falta grave do meio editorial brasileiro: tornou finalmente disponível uma edição local da famosa peça teatral R.U.R., do escritor tcheco Karel Tchápek (1890-1938), e a partir da qual a palavra "robô" entrou em várias línguas do mundo. O irmão de Karel, Josef (que morreria mais tarde num campo de concentração alemão), a sugeriu a ele a partir da palavra tcheca robota, que significaria "trabalhador servo". A peça, escrita em 1920, é um dos marcos da ficção científica do início do século 20, e havia sido publicada em português apenas em Portugal, na antologia Os Melhores Contos de FC de Júlio Verne aos Astronautas, organizada por Lima de Freitas para a Coleção Argonauta.
Fisicamente a edição da Hedra é simpática e apresenta um design sofisticado. Mais importante, porém, é a introdução de Jovanovic, provavelmente o melhor esboço biográfico de Tchápek já publicado no Brasil, com uma contextualização muito boa do tempo e do lugar da sua produção. Ficamos sabendo, por exemplo, que foi graças ao famoso dramaturgo inglês George Bernard Shaw, que R.U.R - ou A Fábrica de Robôs, como os editores da Hedra preferiram chamar - obteve a sua repercussão positiva entre os intelectuais europeus. Jovanovic também nos informa do interesse de Tchápek pela escola pragmática da filosofia americana. Assim como o inglês Olaf Stapledon (1886-1950), Tchápek tinha formação em filosofia, o que transparece em seus textos.
A peça foi escrita em 1920, e marca a fase em que, com Tchápek longe do trabalho jornalístico, a atividade intelectual e literária do autor cresce, ganhando inclusive penetração internacional, quando A Fábrica dos Robôs foi traduzida para o inglês em 1923.
Dividida em três atos, abre com Domin, um executivo da empresa Robôs Universais Rossum, recebendo a visita da filha do seu presidente: Helena Glory é o motor da peça, a personagem que coloca as coisas em andamento, embora, é claro, a fábrica e a sua revolução tecnológica já estejam estabelecidas, quando ela faz a sua entrada. Os robôs - seres artificiais biológicos, e portanto mais próximos daquilo que a ficção científica consagrou como androides - são força barata de trabalho que, de acordo com seus criadores, deverão realizar o sonho da ciência e da tecnologia, de liberar o ser humano para atividades mais enobrecedoras: "Tudo será feito pelas máquinas vivas", diz Domin. "As pessoas vão fazer apenas o que gostam. Vão viver apenas para se aperfeiçoar".
Helena representa a Liga Humanitária, e seu propósito é o de exigir dos homens da R.U.R. a libertação dos robôs e a sua efetiva humanização. Enxerga os robôs como vítimas da exploração do trabalho, e é fácil ver nela a censura da desumanização que a ordem capitalista forçaria sobre o proletariado. Mais que isso, sua postura é moralizante - ela quer que as máquinas vivas, engendradas apenas para o trabalho, tenham direito ao sentimento e ao amor. Suas idéias são ridicularizadas pelos dirigentes da empresa, que enxergam nos andróides seres sem vontade própria e sem ambições - a visão comum dos aristocratas sobre o proletariado. Ela acaba mesmo é se casando com Domin.
A mulher militante, moralizadora e sufragista talvez fosse um leitmotif da época. Certamente reapareceria mais tarde no teatro, por exemplo em A Santa Joana dos Matadouros (1929-1931), de Bertold Brecht (1898-1956), peça clássica sobre a crise do capitalismo (segundo Roberto Schwarz), escrita durante a Grande Depressão.
No segundo ato, Helena ressurge dez anos depois, rodeada por Domin e seus associados, todos enamorados dela e cercando-a de mimos. Eles tentam esconder dela o fato de que os robôs estão rebelados. Um dos diretores, Gall, o chefe da seção experimental da R.U.R., sensibilizara-se com as idéias da moça e inserira modificações na produção dos androides, tornando-os mais aptos para a dor e os sentimentos. Como resultado indireto, passados dez anos os andróides estão prontos para a revolta e a tomada do poder, numa espécie de conflito aberto de classes. Domin e os outros se preparam para a fuga, em um navio armado.
Helena, porém, continua funcionando como a principal modificadora da ação. No segundo ato, por conta de uma espécie de "objeto mágico" que Tchápek isolou como chave para o futuro da revolta, ela volta a ser determinante. O "objeto" em questão são os manuscritos originais do "velho Rossum", o inventor do processo criador dos andróides. Em jogo está a "reprodução" desses seres artificiais. Em paralelo, outro problema demográfico se apresenta: sem precisarem mais trabalhar, as pessoas param de ter filhos.
É como se Tchápek tivesse intuído que a exploração internacional do trabalho, a revolta das massas e os movimentos revolucionários, e a guerra e o choque das nações (a certa altura, os andróides são transformados de força de trabalho em exércitos) na intensidade vista nos séculos 19 e 20, seriam resultado da superpopulação. Uma hipótese que ele também explora no seu famoso romance de 1936, A Guerra das Salamandras, republicado no Brasil agora em 2011, pela Editora Record. O acadêmico inglês John Carey já havia notado, no livro Os Intelectuais e as Massas (1992), que muito do "temor das massas" sentido pelos intelectuais europeus tinha por trás o fenômeno da explosão demográfica. As utopias modernas, do capitalismo internacional do livre mercado ao comunismo, seriam respostas à superpopulação. Na visão de Tchápek, tendo crescido na exploração o que os andróides desejam não é a liberdade, mas a inversão dos papéis, numa possível ditadura do proletariado: "Quero ser o dono dos outros", diz o androide Radius, que sabe que seus irmãos têm as vantagens dos números e da eficiência, sobre os humanos.
Deve ter sido interessante ver A Fábrica dos Robôs no palco. A peça combina momentos exaltados com momentos sombrios, comédia e tragédia. Destituída de qualquer aspecto pretensioso, abraça entusiasticamente o excesso burlesco e a alegoria política.
Sua leitura sugere velocidade e agitação, embora as cenas de revolta dos andróides sejam apenas narradas pelos personagens, que as testemunham pelas janelas da casa de Helena e Domin. Em tudo, a peça de Tchápek dramatiza um destino apocalíptico para as atitudes humanas em torno da ciência e tecnologia, do trabalho e do consumo, que ainda calam no leitor de hoje, quase cem anos depois de escrita. Foi encenada pela primeira vez no Brasil em 2010, com direção de Leonel Moura.





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