'Olimpiada de selvagens' tentou comprovar superioridade
de brancos
Competição com povos de
diferentes culturas, realizada pouco antes de Jogos de 1904 nos EUA, foi
'experimento científico'.
Os
espectadores de um evento esportivo nunca tinham visto atletas tão
indisciplinados.
Na prova dos 100m rasos, em vez de largar ao estalar da pistola,
uns competidores se antecipavam e eram desqualificados; outros se assustavam e
não saíam do canto.
Ao se aproximar da linha de chegada, em vez de romper
triunfalmente a fita com o peito, muitos hesitavam ou passavam por baixo dela.
Para um observador daqueles Jogos, ficara claro que muitos
estavam ali apenas 'por diversão' e não levavam a competição 'a sério'.
Estes não eram Jogos Olímpicos quaisquer, mas sim um
'experimento científico', com nativos da Ásia, África e diversas partes das
Américas, realizado em meados de agosto de 1904, duas semanas antes da abertura
oficial das competições para valer em St Louis, em Missouri.
Os organizadores se orgulhavam ao se referir às chamadas
Jornadas Antropológicas como 'o primeiro encontro atlético do mundo no qual os
selvagens são os único participantes'.
O observador em questão não era imparcial: tratava-se do chefe
do departamento esportivo do comitê organizador olímpico local, James Edward
Sullivan, que queria através do experimento ressaltar as proezas do 'homem
civilizado' e contrariar a ideia de que os povos nativos são 'atletas
naturais'.
'Por muitos anos fomos levados a crer, por aqueles que deveriam
saber, por artigos na imprensa e por livros, que o selvagem médio tinha pés
velozes, membros fortes, precisão com o arco e a flecha e conhecimento em jogar
pedras', inconformava-se Sullivan no seu relatório oficial publicado no ano
seguinte.
'Ouvimos maravilhas dos corredores indígenas, da resistência dos
negros do sul da África, e das habilidades naturais dos selvagens em questões
atléticas', prosseguia. 'Mas os eventos em St Louis provam o contrário destas
histórias.'
Experimento fracassado
Como nos Jogos Olímpicos anteriores, de 1900, os de St Louis se
realizavam paralelamente à edição daquele ano da Feira Mundial.
Para os experimentos, Sullivan trabalhou em parceria com o
diretor de Antropologia da Feira, William John McGee.
'O que para mim é interessante é que aqueles dois homens
pensaram as Jornadas Antropológicas com seriedade', disse à BBC Brasil a
professora de Antropologia da Universidade de Missouri em St Louis, Susan
Brownell, editora do livro The 1904 Anthropology Days and Olympic Games: Sport,
Race, and American Imperialism (em tradução livre, 'As Jornadas de Antropologia
de 1904 e os Jogos Olímpicos: Esporte, Raça e Imperialismo Americano).
'McGee pensou as Jornadas como um experimento sério de
antropologia, enquanto Sullivan tratou o evento com seriedade do ponto de vista
do esporte, das medições, dos recordes, etc.'
Não é difícil entender por que a ideia não funcionou. Susan
Brownell diz que Sullivan não se incomodava em 'comparar maçãs e bananas',
contrapondo os resultados de nativos sem treinamento com o de atletas bem
preparados e selecionados para representar o melhor dos seus países.
'Os nativos tiveram duas etapas de competição, uma de tentativas
e outra de finais, portanto não (tiveram) quase nada de experiência', disse a
pesquisadora.
'As regras eram explicadas em inglês, que muitos não entendiam,
eles não tinham nenhum treinamento, nunca tinham praticado os esportes, e o que
foi ainda mais ridículo foi que muitos foram desqualificados depois de queimar
largadas nas modalidades de atletismo', contou.
'Naturalmente, até passar por esse processo todo, o seu
desempenho era muito pior do que a dos homens civilizados.'
No seu papel de cientista, McGee, um geólogo, etnólogo e
antropólogo autodidata, ainda tentou observar que os nativos talvez fossem
capazes de obter resultados melhores nas provas, se lhes fosse permitido um
pouco mais de prática.
Conta a antropóloga que McGee chegou a organizar uma nova
bateria de Jogos, em setembro daquele ano, mas os registros do segundo evento
nunca foram encontrados e ninguém sabe o que aconteceu.
Já Sullivan discordou que a 'total falta de habilidade' dos
nativos para a prática do esporte se devesse à falta de treino.
'O dr. McGee atribui esta total falta de habilidade atlética dos
selvagens ao fato de que eles nunca foram instruídos ou educados. Ele crê que
talvez se eles tivessem um pouco de treinamento profissional poderiam ser tão
proficientes quantos muitos americanos', escreveu.
'Este autor discorda, já que as demonstrações dadas durante
esses dias em particular não atestam por eles. O encontro prova conclusivamente
que tem-se exagerado o homem selvagem do ponto de vista atlético.'
Legado
Sullivan queria que as Jornadas Antropológicas fossem um
experimento 'dos mais bem sucedidos e interessantes', ao qual 'homens da
ciência' se referissem 'por muitos anos'.
'Acadêmicos e pesquisadores no futuro, por favor, omitam
qualquer referência às habilidades atléticas naturais dos selvagens, a menos
que possam consubstanciar suas supostas qualidades', escreveu.
Entretanto, como observa Susan Brownell, 'nenhum dos
antropólogos da época publicou nenhum estudo sobre o evento'.
'No fim, eles devem ter se dado conta de que se tratava
simplesmente de ciência de má qualidade - ou que não era ciência e ponto'.
Mesmo assim, a pesquisadora avalia que aquela experiência deixou
legados positivos e negativos.
Por um lado, as Jornadas foram uma espécie de 'divisor de águas'
na antropologia americana, empurrando de vez cientista como Franz Boas -
considerado o pai dos estudos no seu campo - para uma abordagem cultural das
diferenças entre as pessoas, em oposição à teoria evolutiva de McGee.
Do ponto de vista esportivo, entretanto, Brownell lamenta que os
'excessos' da experiência tenham levado as autoridades esportivas europeias a
adotar o caminho oposto tão logo as Olimpíadas regressaram ao Velho Continente,
nos Jogos Intercalados de Atenas em 1906.
Foi a primeira vez que os atletas desfilaram sob as bandeiras
nacionais, ao som de um hino e representando um comitê olímpico de seu país.
'A noção de cultura foi empurrada para fora do tabuleiro',
afirma a pesquisadora. 'Havia toda essa diversidade cultural que foi
rapidamente eliminada dos Jogos Olímpicos depois disso.'
Não aos jogos étnicos
De lá para cá, o mundo raramente viu, por exemplo, partidas de
futebol gaélico, esportes germânicos ou lacrosse - um esporte nativo americano
- em competições olímpicas.
Como especialista em esportes chineses, Susan Brownell
acompanhou a briga chinesa para incluir artes marciais nos Jogos de Pequim, sem
sucesso.
'Hoje em dia é simplesmente impossível para um esporte
identificado com tradições culturais ou grupos étnicos virar modalidade
olímpica', diz.
Para as tentativas de comprovar a supremacia desta ou daquela
raça através do esporte, os experimentos foram um balde d'água tão grande
quanto o que o atleta negro americano Jesse Owens jogou sobre os planos de Adolf
Hitler - que queria provar a supremacia ariana - ao levar quatro ouros nos
Jogos de Verão de 1936 em Berlim.
'Esporte não é ciência', resume Susan Brownell. 'E os seres
humanos são demasiadamente complexos para reduzir o seu desempenho esportivo a
um único gene.'
V
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