O Brasil não é mais um país apenas católico?
O Censo de 2010 revelou o
crescimento significativo da população evangélica no Brasil que passou de 15,4%
em 2000 para 22,2% em 2010. Dos que se declararam evangélicos, 60,0% se
disseram de origem pentecostal, 18,5%, evangélicos de missão e 21,8 %, evangélicos
não determinados. Segundo este mesmo censo, diminuiu o número dos que se
designaram católicos ao longo da última década e aumentou o número dos que
dizem não ter religião. Estes números apresentam um Brasil bem diverso daquele
que prevalecia até o último decênio do século XX. O crescimento da
população evangélica parece ser uma das maiores mudanças em termos de visão de
mundo ocorridas nos últimos vinte anos no Brasil. É difícil pensar sobre esse
tema sem cair no debate acalorado de posições extremadas. O que significa esse
florescimento? O Brasil deixou de ser um país católico?
Dentre as muitas questões que
devem ser pensadas sobre o aumento do protestantismo destaco duas que,
evidentemente, não esgotam o problema. Em primeiro lugar, o que muda quando 20%
de uma população majoritariamente católica passa a se declarar protestante? Em
segundo, qual a relação deste fato com o que vem sendo chamado de intolerância
religiosa?
Em um post anterior afirmei que o Brasil do real
e do controle da hiperinflação, que completou 18 anos este ano, foi acompanhado
pelo crescimento de uma nova classe média – milhares de pessoas deixaram de
viver abaixo da linha da pobreza – e de uma ética centrada na responsabilidade
individual, com o crescimento paralelo do número de protestantes. Alguns
leitores me perguntaram o que tem a ver o aumento do protestantismo com o Plano
Real. Há muito tempo venho pensando nesse aspecto da questão. É difícil dizer o
que vem antes, o ovo ou a galinha.
O crescimento espantoso do
número de evangélicos no País talvez seja sinal de que as regras morais e os
valores indispensáveis ao surgimento do “espírito do capitalismo” são, de fato,
complementares às mudanças econômicas e à maior racionalidade na vida
cotidiana. Max Weber, um dos fundadores, e clássico da sociologia, escreveu
sobre isso no século passado. Não penso ser absurdo admitir que no Brasil do
século XXI uma ideologia mais voltada para o indivíduo e para o trabalho tenha
sido concomitante à obra dos economistas que planejaram e executaram a
estratégia de controle da inflação. A luta contra o clientelismo, ao qual
sempre esteve ligada a Igreja católica, faz parte da nova ética necessária à
implantação de forma mais racional e menos emocional de gerir a vida cotidiana
e, é claro, a vida pública.
A pergunta que sempre me faço é
por que tantas pessoas têm abandonado suas pertenças religiosas para aderir à
fé protestante? Será possível que mais de 20% de adeptos do protestantismo
sejam apenas pessoas ingênuas e manipuladas por falsos pastores que só desejam
o seu dízimo?
Quando afirmo estas minhas
ideias muitos me contradizem dizendo que os protestantes brasileiros não
têm a lógica do calvinismo clássico, europeu, e mostram os alarmantes processos
de intolerância religiosa como o que ocorreu no último dia 17 de julho na
cidade de Olinda, em Pernambuco. Nessa noite, um grupo de evangélicos
empunhando a Bíblia Sagrada invadiu um terreiro onde se realizava um ritual de
candomblé, gritando que seus adeptos eram enviados do demônio, de satanás, do capiroto.
A intolerância e a violência devem, é claro, ser combatidas. Não
se justificam num país democrático, onde a Constituição prega a liberdade
religiosa. O fato é grave e há leis que devem ser acionadas em defesa daqueles
que sofrem qualquer tipo de perseguição. Mas é preciso entender o que
está em jogo quando pessoas de credos diferentes se enfrentam, pois o conflito
revela mais do que os interesses materiais e diretos daqueles que estão em
combate. A intolerância religiosa por parte de alguns evangélicos pode estar
vinculada ao fato de almejarem a destruição da crença de que as pessoas são
vítimas de ataques místicos, de olho grande, de feitiço o que, segundo eles,
retira do indivíduo a responsabilidade sobre seus atos. O caso do “Quebra de
xangô” nas Alagoas que narrei em outro post é um caso paradigmático.
A entrevista feita com Rosane Collor de
Mello, ex-primeira-dama do País, que teve enorme repercussão, talvez seja um
bom caso para pensar esta nova ética. Rosane Collor, convertida ao
protestantismo, acusou seu ex-marido, quando era presidente, de praticar atos
de “magia negra” na residência particular do casal em Brasília. Na entrevista
Rosane Collor também falou da conversão da mãe-de-santo Maria Cecília que
frequentava a casa da família para realizar rituais de magia negra durante a
corrida de Collor para a presidência e, mesmo depois, para protegê-lo dos
ataques místicos de seus inimigos, fazendo com que o mal que eles lhe desejavam
se voltasse contra eles mesmos. Uma foto mostrando a mãe-de-santo citada na
entrevista, subindo a rampa do Palácio do Planalto em 1991 ao lado do
presidente vestido de branco, revela as ligações perigosas de Fernando Collor
de Mello que possibilitaram as acusações de bruxaria. Rosane Collor disse que
apenas ela e a ex-mãe-de-santo Maria Cecília, por terem “aceitado Jesus”, se
livraram do que ela chamou de “maldição do Collor”. Segundo Rosane, só a
entrega a Jesus protegeria os indivíduos das tramas nas quais se enredam
aqueles que se dedicam a praticar os rituais de magia negra. Só Jesus salva da
sina ou da maldição que não permite que o indivíduo se responsabilize pelos
seus atos.
É impensável, vinte anos depois do impeachment de Collor de Mello, uma relação tão
estreita entre um presidente e uma médium. A entrega a Jesus propugnada
pelos evangélicos, pode ser vista como um rompimento com esta cosmologia do
feitiço na qual as pessoas estão sempre tendo de se defender dos ataques
místicos e, com isso, dependendo dos que têm esses poderes para livrá-los do
mal. O feitiço une assim pessoas e grupos e simboliza o clientelismo na
política e na vida social. Os protestantes rompem também com a aliança
centenária da Igreja católica com as religiões afro-brasileiras, que ao mesmo
tempo as atacava e mantinha uma relação ambígua. Romper os laços com a Igreja
católica e com a crença no feitiço representa uma virada radical no cenário
cosmológico da vida social brasileira.
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